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quarta-feira, 30 de novembro de 2022

um texto por dia: "como imaginas a terra em 2122?" (8)

Hoje o CRESCER apresenta o oitavo texto do 10ºA, dos onze publicados no PÚBLICO. Faltam três. Um por dia...

Até amanhã

Querido diário,

Estamos cada vez mais perto do fim.

Hoje, dia 27 de setembro de 2122, quando acordei, o meu relógio assinalava 11h00, o que me surpreendeu. (Desde que me mudei para a Suíça, sempre acordei antes das 7h00).

Não dormi muito bem, ontem à noite um mau pressentimento sussurrava no fundo da minha mente. Tentei ignorá-lo, esquecê-lo, seguir com o meu dia. Não era a primeira vez que algo do género acontecia. (Duvido que seja a última). A diferença era o facto de ter acordado tão tarde. Normalmente, os sussurros não eram sussurros. Eram gritos que seguiam um ciclo infinito: acordam-me a meio da noite e não me deixam voltar a adormecer.

Infelizmente, a boa noite de sono foi apenas a calma antes da tempestade. As notícias indicavam algo pior do que o normal: extinção de algumas espécies; os perigos de que a Terra seria vítima se nada fosse feito; e a tentativa falhada da Humanidade de fugir das consequências dos seus atos. Sinceramente, não sei porque ainda me surpreendo. Se algum dia qualquer destes tópicos não aparecer nas notícias, um milagre aconteceu.

Depois disso, apenas entrei no modo piloto automático – estava na hora de trabalhar. (Hoje em dia, trabalhar em casa é muito mais económico, pelo que eu faço exatamente isso). Todos os anos os salários diminuem e os preços aumentam. Poucos são os que não passam por dificuldades financeiras – talvez a exceção seja uns sobreviventes herdeiros de fortunas ou líderes políticos. Falando nestes, acreditas que ainda entram em guerra por coisas tão insignificantes? Há pouco tempo, os EUA declararam guerra à Alemanha – algo sobre regimes políticos adversários. No entanto, o maior problema é a população dos países em guerra e os seus vizinhos. (Acho ridículo a maneira como eles agem, como se estivessem certos, como se não estivessem a piorar as nossas vidas).

desenho de Sofia Bessa, aluna do 5º ano da Escola Básica 2/3 Maria Manuela de Sá

O meu relógio marcava 14h20, assim que terminei a minha parte de trabalho do dia. Estava na hora de comer. Dirigi-me ao meu frigobar, protegido pela mesa de jantar. Encontrei duas garrafas de água, um pote de compota de abóbora que já estava a acabar (o presente de aniversário que comprei a mim mesma) e os restos do jantar de ontem. Teve de servir. Não fiquei cheia e eu sei que não me faz bem algum comer tão pouco, mas não há muito que eu possa fazer quanto a isso.

Apenas uma hora mais tarde, saí de casa, rumo ao supermercado. A pior parte do meu dia havia chegado – odeio ter de enfrentar a realidade em que vivemos. O céu permanecia naquele tom cinzento que me lembrava um metal prestes a ser afetado pela ferrugem. Não sei exatamente quando ou como aconteceu, mas aquela cor sobrevoa as nossas cabeças há tempo suficiente para que o antigo azul deixe de ser familiar. Observei as ruas. Os prédios pequenos – iguais àquele onde vivo – estavam repletos de buracos que a chuva ácida havia deixado nos últimos dias.

A caminhada foi normal. A destruição e as poucas pessoas, que pareciam não aguentar mais, foi tudo o que eu vi até chegar ao meu destino. O supermercado diminui todos os dias, na tentativa de abrigar os que haviam perdido as suas casas. Tudo o que consegui comprar com o restante do meu dinheiro foi uma garrafa de água (a minha maior prioridade) e três maçãs. Não fui capaz de evitar olhar para a secção de doces, agora vazia. Relembrei os felizes e confortáveis momentos antes do incidente. Antes do início disto tudo. Antes do lançamento da bomba.

O caminho para casa foi lento e doloroso. É por volta desta hora que as crianças saem de casa à procura de comida e dinheiro. Querem ajudar a sustentar as suas famílias. São nestes momentos que eu gostaria de ter apreciado a minha juventude enquanto pude. Talvez assim, eu não me sentiria desta forma. Quem é que eu quero enganar? Não são só os políticos e as pessoas no poder que permitiram isto acontecer. Talvez – só talvez – se eu me tivesse esforçado mais, se tivesse tentado mais, se tivesse prestado mais atenção, se tivesse me voluntariado, talvez nada disto tivesse acontecido. Eu sei que eu não poderia ter feito nada para prever ou parar isto. Mas estas crianças merecem melhor e eu não consigo evitar culpar-me por elas não terem esse melhor.

Assim que cheguei em casa, tentei ligar as luzes, mas a escuridão continuou a envolver-me. Tudo pareceu mais frio. Tudo o que consegui pensar foi a comida no frigobar e como ela se vai estragar. Decidi guardar as compras e tomar um duche, mas nenhuma água caiu.

A minha energia acabou e dirigi-me ao meu espelho. Fiz contato visual com um olhar como os das pessoas que vi mais cedo. Um olhar cheio de cansaço e derrota, mas principalmente vazio, simplesmente vazio. Exatamente como me sinto por dentro. Talvez seja verdade o que dizem: “Os olhos são janelas para a alma” e a minha há muito tempo que desistiu.

Agora, estou deitada no conforto da minha cama (uma cama de solteiro coberta por uma manta grossa). Estou à espera de que o sono me engula e eu possa finalmente ter o meu momento de paz. Com sorte, amanhã eu não acordarei.

Até amanhã (se tiver azar),

a alma que continua a escrever. 

                                                                                                                      Joana Peixinho, 10º A

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