A forma como "revolucionou" a língua portuguesa, o humor da sua escrita, os mundos de possibilidades que avançou nas suas histórias. Em 2022, nos 100 anos do seu nascimento, há muito que nos impele ainda a ler e reler José Saramago, como alguns dos vencedores do prémio literário criado em seu nome explicam. Ao SAPO24, quatro autores distintos falaram sobre o impacto que tanto a escrita de Saramago como a atribuição do galardão tiveram nas suas vidas — e porque é que continua a valer a pena perder-nos na obra saramaguiana.
Quando Rafael Gallo, o mais recente vencedor do Prémio Literário José Saramago, foi instado a explicar a sua relação com a obra do escritor que batizou este galardão, o autor brasileiro não poupou nas palavras para descrever como “Ensaio sobre a Cegueira” o influenciou.
“Foi um daqueles livros que li quando era mais jovem, daqueles livros que realmente mudam a nossa visão de mundo. Como se instalasse uma nova chave no seu cérebro, que dali para frente se pode acionar e viver tudo na vida de formas diferentes”, disse aos jornalistas, no final da cerimónia de entrega do prémio.
Não foi o único. A propósito da celebração do centenário de José Saramago, o SAPO24 desafiou outros vencedores deste prémio a explicar o que os livros do autor ribatejano representam para si e como moldaram o seu percurso.
“Acho que para a escrita, para quase todos os que escrevem em português, e não só, Saramago tem uma enorme importância. Poderá não ser uma influência direta em muitos autores, mas tem muita importância para nós enquanto leitores”, diz Bruno Vieira Amaral, ressalvando “o cruzamento que ele consegue fazer entre o lado erudito da língua e também a oralidade”.
Indo ao encontro do que disse o escritor oriundo de São Paulo, o Prémio Saramago de 2015 — conseguido com “As Primeiras Coisas” — recorda que quando leu Saramago pela primeira vez, com “17 ou 18 anos”, a experiência ajudou a abrir “as possibilidades da língua”, porque “de repente torna-se possível um exercício da língua que até aí não se imaginava”.
“Há ali uma grande ideia de necessidade, parece que a língua está a ser de facto inventada naquele momento, ainda que vá buscar muito a uma fonte mais antiga”, continua o escritor barreirense, lembrando que se Saramago foi influenciado em parte pela escrita de Padre António Vieira e do Barroco, “quando se lê os livros dele aquilo nunca soa nem parece um exercício de recriação ou quase de pastiche do que foi feito, pelo contrário”. “Quem está a ler pela primeira vez sente esse impacto. Aquilo parece uma coisa ao mesmo tempo muito antiga e muito moderna”, sugere.
Daí surge uma “sensação de espanto” que, adverte, dependerá “da altura em que se lê” Saramago pela primeira vez e “daquilo que já se leu antes”, mas que, acredita, “será uma experiência comum a muitos leitores”. Foi assim também para Gonçalo M. Tavares.
“O primeiro livro que eu li de José Saramago, se não me engano, foi o ‘Memorial do Convento’. Marcou-me logo muito”, conta o vencedor do prémio em 2005 por “Jerusalém”. “O momento em que se lê Saramago é um momento que fica. Por exemplo, com “O Ano da Morte de Ricardo Reis”. Aquelas primeiras páginas sobre a chuva em Lisboa são qualquer coisa que é impossível esquecer”, continua, apontando para a “potência de realmente estarmos a ler qualquer coisa que de repente se transforma em imagem”. No seu entender, a leitura de Saramago proporciona imagens com lugar cativo na cabeça, “não porque tenham passado para filmes, mas porque são visualmente fortíssimas”.
Um dos elementos que aponta como singulares em Saramago é o facto de criar um imaginário que “parte de uma hipótese aparentemente impossível — uma cegueira que se contamina [“Ensaio sobre a Cegueira”] ou a morte que é interrompida no mundo [“As Intermitências da Morte]” —, para qualquer coisa que depois, ao fim de 10 páginas, se torna absolutamente natural”. @ Sapo
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