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sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

opinião: "Autopsicografia do professor português"

Recordando o poema referido pelo professor Carlos Ceia* no seu texto de opinião: 

"O que há em mim é sobretudo cansaço", de Álvaro de Campos, dito por Manuela Couto

"O cansaço que nasce disto tudo não é metafísico nem poético, é um sintoma de exaustão que empurra os professores para um espaço fora de si mesmos. Os professores portugueses mereciam outro país. 

Se quisermos compreender o estado de alma de um professor português de hoje, se alguém quiser analisar a sua autopsicografia, comece por ler o poema O que há em mim é sobretudo cansaço, de Álvaro de Campos, e encontrará aí o melhor retrato psicológico do professor português de hoje. “Um supremíssimo cansaço”, num dos versos do poema, é aquilo que sentem os professores que nas últimas décadas se têm adaptado a todas as modificações que lhes impuseram na sua vida profissional. Agora rebentaram as águas do desespero, da exaustão de quem não aguenta mais as vicissitudes da sua profissão.

O professor português cumpriu tudo o que lhe pediram nas últimas décadas, a cada mudança curricular, a cada mudança do sistema de avaliação, a cada mudança dos processos de gestão escolar, a cada regra nova que chegou à sua escola quase diariamente. Foi calando, foi desabafando com os seus pares, porque a sociedade desistiu de o compreender, tentou pequenos protestos e nada resultou. Não me surpreende ver este reerguer de toda uma classe de forma espontânea, como se todos pertencessem ao mesmo partido da educação, que não existe, mas que devia existir, que não tem fronteiras políticas e que obedece apenas ao coração de cada um. Se na "Crónica de D. João I", de Fernão Lopes, aprendemos como se constrói o sentimento colectivo do povo português pela consciência de que todos pertencemos a uma mesma nação ou comunidade, esta “arraia-miúda” de professores que agora veio para as ruas transporta o mesmo sentimento colectivo de uma nação de professores que não aceita mais a discriminação social e política.

Cada vez tenho menos argumentos para convencer jovens estudantes a optar por esta profissão. Como explicar-lhes que o Estado trata os professores de forma diferente: aos governantes que declarem residir fora de Lisboa dá-lhes ajudas de custo no valor do ordenado mínimo; aos médicos que queiram ir trabalhar longe de casa, a partir de 2024, através do programa “Mais médicos”, dá-lhe um aumento salarial de 40% e casa para morar; aos restantes funcionários públicos conta-lhes todo o tempo de serviço prestado, mas deixa os professores de fora nesta equação; na Madeira e nos Açores, os professores conseguiram recuperar faseadamente todo o tempo de serviço; no continente, os professores continuam à espera dessa recuperação, embora todos descontem por igual para a Caixa Geral de Aposentações; os técnicos superiores da função pública com doutoramento foram aumentados 400 euros, mas os muitos professores que hoje já têm doutoramento ficaram exactamente onde estão, com o mesmo dinheiro e sem uma justa progressão na carreira.

Como explicar ainda aos jovens aprendizes de professor que aquilo que têm de ensinar amanhã não é um currículo completo, mas apenas aprendizagens essenciais que nunca foram concebidas para serem currículo completo? Como explicar-lhes a lógica de um sistema de avaliação de aprendizagens que anula a função de um professor e o transforma num polícia de comportamentos que vai anotando em grelhas insanas cada estímulo recebido, sobrando tempo nenhum para o acto de ensinar, de pensar naquilo que se ensina e de ajudar a aprender verdadeiramente?

O cansaço que nasce disto tudo não é metafísico nem poético, é um sintoma de exaustão e descrença profissional que empurra os professores para um espaço fora de si mesmos: já não agem, apenas reagem; já não pensam no seu próprio discurso de aula, apenas informam; já não conseguem avaliar aprendizagens, apenas registam resultados visíveis.

Em matéria de educação, os programas de todos os partidos portugueses são paupérrimos. Não há um plano estratégico a médio, longo prazo, tudo é pensado para o momento ou para o tempo de uma legislatura. Mudanças eficazes em educação exigem muito mais tempo de maturação e, sobretudo, visão estratégica. Se no início deste ano lectivo, em França, faltavam 4000 professores, o Presidente francês, Emmanuel Macron, prometeu que nenhum professor iniciaria a sua carreira profissional com salário inferior a 2000 euros e tentou assim atrair novos profissionais.

Nos EUA, o American Rescue Plan Act, de Joe Biden, representou em 2021 o maior investimento público de sempre em educação, com 170 biliões de dólares, focado sobretudo na contratação de mais professores e combate ao abandono escolar. A República da Irlanda, país da nossa dimensão, tem um orçamento de quase dez mil milhões de euros para a educação em 2023, dos quais dois mil milhões para contratar novos professores. Estes são breves exemplos de políticas com visão estratégica de quem quer realmente apostar na educação e nos professores.

Também começo a sentir “um supremíssimo cansaço” disto tudo. Em breve, terei de enfrentar, num único seminário, 150 novos candidatos a professor. Não sei quantos ficarão até ao fim do curso, e quantos irão sobreviver ao primeiro impacto da vida real. 

Ninguém acolhe um jovem professor numa terra estranha. Poucos sobrevivem com apenas 1000 euros líquidos para alimentação, alojamento e viagens e muitos têm de pedir ajuda aos pais para poderem trabalhar. Parecem condenados a sentir logo “um supremíssimo cansaço” assim que experimentam a profissão pela primeira vez.

O professor português não é um fingidor e sente todas as suas dores. Mais, tem de gerir as dores de todos à sua volta diariamente, substituindo tantas vezes aqueles que tinham a responsabilidade de cuidar dos afectos dos seus alunos. Hoje, tudo se pede a um professor, pede-se-lhe a responsabilidade total de educação de um jovem, embora seja pago apenas para ensinar, por isso, reconhecer que os professores estejam cansados, supremissimamente cansados, devia ser suficiente para reconhecer que o seu protesto de classe é justo. Os professores portugueses mereciam outro país."

 *Carlos Ceia, professor catedrático de Didática do Português na Universidade Nova de Lisboa
28.01.2023

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