O que indigna e o que tem de ser dito, por Isabel Santiago*
O Presidente da República declarou que os professores corriam o risco de a opinião pública ficar contra eles. Pois olhe, sr. Presidente, que a sua inquietação devia ser outra.
I. A grande lata
A 14 de janeiro fui para a Avenida da Liberdade. No dia anterior, as declarações do ministro da Educação enfureceram a minha conhecida paciência.
Em abstrato, num cenário que só existirá na sua visão distante da realidade, declarou que os professores estavam a praticar greves ilegais e que a inspeção iria tomar conta da situação. Nem sequer sou sindicalizada, mas achei o argumento tão falacioso – na prática haver alguns sindicatos (caso existam, ainda não se sabe) que praticam alguns atos menos legais, não sei, não o pode levar a concluir que os professores são uma corja que age fora da lei – e tão reprovável eticamente que fui para a rua. Vindo de um Governo em que ministro sim, ministro não, secretário de Estado sim, secretário de Estado não, é suspeito de corrupção ou de benefício pessoal no exercício do cargo ou no favorecimento de familiares e em que entre Governo e família não há separação incomodou-me.
E o ministro incorreu noutra falácia, apelando à piedade da opinião pública: os professores estão em greve quando ele ainda está em negociações.
A que governação exemplar pertence o ministro para nos vir dar lições de moral? E quando é oportuno fazer greves? Nesta classe há muito que elas são tentadas, mas não ganhamos o suficiente para as podermos realizar. Desta vez há exaustão e ela é generalizada. E, como diz o povo, de pobretanas não passamos. Mas o que o ministro não pode e, não deve fazer, se quiser no mínimo ser ético, é não falar para a opinião pública ou apenas para uma parte da escola, os pais. Da escola fazem parte, com a mesma importância dos alunos, os professores e os assistentes. Não se ouvem os alunos, ainda que nesta greve, também do lado dos professores se façam ouvir, nem os assistentes, nem os professores. Mas o ministro é apenas ministro dos pais? Que estranho, no mínimo mais um ato falacioso chamado apelo à popularidade. Compreende-se: os pais são mais, eles escolhem o Governo.
Pelo meio fiz uma greve. O ministro não esteve presente nas reuniões e fez-se representar. E é assim que não se respeita a democracia a que tanto apela a que se ensine nas escolas. Faltou. Ele que já é um representante mandou um representante do representante, no limite, qualquer um poderia estar no seu lugar. O que o ministro João Costa parece estar a esquecer é que ele é ministro de todos, e não apenas dos pais. E se os pais (associações) estão preocupados, e têm razões para estar, a sua preocupação não se deve fazer sentir apenas com a falta dos professores às aulas em dias de greves pontuais. Devem, ministro e pais, estar preocupados com aspetos bem mais graves e sistémicos do que com estes acidentes de percurso.
Afinal, alguma associação de pais se manifestou preocupada com o bem-estar dos professores? Com os programas em vigor e com a redução do ensino ao essencial (tão duvidoso, em tantas circunstâncias)? Alguma associação se manifestou indignada com o facto de ter filhos sem aulas um ano inteiro, ou quase, a várias disciplinas? Alguma associação já disse ao ministro que não deseja que os seus filhos aprendam com qualquer pessoa com uma formação desconhecida ou sem preparação alguma para o papel pedagógico? Alguma associação já disse ao ministro que não entende a forma como os filhos são avaliados e a dificuldade que há em acompanhar a linguagem obtusa com que a escola comunica com os seus educandos e com eles?
Para os assuntos determinantes, os pais e as suas associações não se fazem ouvir. Porquê? Porque todos têm beneficiado deste sistema que troca quantidade de aprovações por qualidade do ensino. Isto tem que ser dito. Já se mostraram indignadas estas associações contra os pais que destratam os professores? É a grande lata de uns e outros. O ministro pede-nos a ética que não tem para com os professores – só governa para os pais – e os pais continuam a ter uma carta de interesses que aposta no mais fácil e no mais linear. O ministro dá-lhes o que pedem. Deve ser mais fácil qualquer professor compensar, em termos de aprendizagem, duas ou três aulas do que as lacunas estruturais de um ano, ou mais, sem aprendizagens consolidadas. Digo eu, mas de ministérios não percebo nada.
II. A grande inversão de valores
Na véspera da greve de 2 de fevereiro, o Presidente da República declarou que se os professores continuassem com esta insubmissão corriam o risco de a opinião pública ficar contra eles. Vamos lá ver se a gente se entende, os professores não têm que agradar à opinião pública, não são eleitos. Os professores fizeram provas para serem professores. Foram formados pelas universidades. Uma opinião pública esclarecida está com os docentes, não se deixa enganar por todo o tipo de comentador.
Sr. Presidente da República, os professores não querem a maioria da opinião pública a seu favor para dar aulas e verem valorizadas as suas carreiras. Os professores querem ter o reconhecimento social e económico pelo que a cada ano fazem pelos alunos, nas escolas públicas e pela democracia que os governantes destratam. Os professores vão fazer serviços mínimos? Devia saber que fazem serviços máximos há anos. Sobre isso, se tiver oportunidade, escreverei noutro dia para esclarecer a opinião pública. Mais horas extraordinárias pedem os pais – os pais que são a opinião pública que tanto o inquieta já nos agradeceram o tanto que damos?
Pois olhe que a sua inquietação devia ser outra, devia ser perceber e ver de perto – quem sabe numa presidência aberta – o que é a vida de um professor e pedir a uma entidade isenta, realmente isenta, uma análise crítica do sistema. Acha normal um professor não ganhar para pagar uma renda? Acha normal não serem os governantes a preocupar-se connosco mesmo quando somos 150 mil na rua? Acha normal 150 mil professores estarem insatisfeitos? E a sua preocupação é a opinião pública?
A mim, desculpe a humildade da visão, parece-me que está a ver o problema ao contrário ou a tentar fazer-nos sentir mal. Sabe, o que esperamos de si? Esperamos que fizesse ao primeiro-ministro, e em relação aos professores, o que ele fez quando ameaçou demitir-se, se nos repusessem o tempo de serviço. E se o ameaçasse, a ele, de que o demitiria por estar a tratar, há duas legislaturas, a educação com um desrespeito nunca visto e a educação ser um dos pilares da democracia? Olhe que não lhe fica bem deixar que o ministro e o primeiro-ministro nos destratem como se fossemos insuportavelmente insubmissos. Convide-os a que nos tratem com respeito e dignidade. Não se invertam nem as perguntas nem os valores. E a pergunta é: como mudar um sistema indigno e injusto para um sistema justo para alunos e professores?
*Isabel Santiago, professora do ensino secundário, no PÚBLICO de 20.02.2023
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