O mundo é muito diferente do de há 150 anos, mas o ato de questionar continua a assumir a mesma importância. Quarta-feira, em Lisboa, inicia-se o novo ciclo de Conferências do Casino. Tema: "O Fim da Paz?-A Rússia, Último Império Colonial".
O velho Casino Lisbonense há muito que desapareceu da paisagem do Chiado mas o espírito que o animou em maio de 1871, quando da abertura das Conferências Democráticas, promete estender-se agora à Gulbenkian, mesmo que os participantes nas novas conferências do Casino já não se desloquem de fiacre. A abertura deste ciclo (iniciativa conjunta do Círculo Eça de Queiroz, Grémio Literário e Centro Nacional de Cultura) está marcada para a próxima 4.ª feira, 17, às 17.00, no auditório 3 da Fundação Calouste Gulbenkian, quando o ensaísta Giuliano da Empoli e o consultor político, antigo secretário de Estado dos Assuntos Europeus, Bruno Maçães, debaterem o tema "O Fim da Paz?-A Rússia, Último Império Colonial".
Embora também tenha o propósito de comemorar os 150 anos das Conferências do Casino originais (o que não pôde acontecer em 2021 devido à pandemia), as preocupações com a atualidade estão muito presentes, como diz ao DN o advogado e presidente do Círculo Eça de Queiroz, Pedro Rebelo de Sousa. "Mais do que reflexões umbilicais, revisitando passado pretérito ou recente em catarses auto analíticas, o nosso objetivo é abrir o palco a intervenções e debate sobre temas mais macro, contextualizando a interação dos vários atores internacionais em particular a Europa e, nela, países como o nosso. Ou abordando temáticas estruturantes como a Inteligência Artificial e a Energia." Também por isso, Pedro Rebelo de Sousa considera que esta é a melhor maneira de homenagear o esforço pioneiro de homens como Antero de Quental, Eça de Queiroz ou Batalha Reis, que, em meados do século XIX, procuraram dar um safanão na estagnada sociedade portuguesa através do pensamento crítico: "Não há melhor forma de relembrar as primeiras Conferências do que ter oradores estrangeiros e nacionais que façam a diferença e nos levem a pensar além fronteiras."
À conferência inaugural seguir-se-ão outras seis, sempre em torno de temas que a organização identificou como problemas globais e críticos do nosso tempo. A 22 de junho, o tema "A salvação pela Arte; criação artística e Inteligência artificial" reunirá Joana Vasconcelos, Massimo Sterpi e Arlindo Oliveira. A 19 de julho, o francês Pascal Lamy, que já foi presidente da Organização Mundial do Comércio e comissário europeu para o mesmo setor, está já confirmado para o painel consagrado ao "Futuro da Europa". Mas ainda se aguarda a confirmação de outras presenças.
Em 1871, Portugal e o mundo, escusado será dizer, eram muito diferentes da atual conjuntura. Reinava entre nós o senhor Dom Luís, primeiro e único do nome, e a acalmia política e social a que aspiravam os governos da Regeneração via-se comprometida pelos ecos de acontecimentos internacionais como a Comuna de Paris ou a Guerra Franco-Prussiana. A 18 de maio desse ano aparece no jornal A Revolução de Setembro um manifesto assinado por homens como Adolfo Coelho, Antero de Quental, Augusto Soromenho, Augusto Fuschini, Eça de Queiroz, Germano Vieira Meireles, Guilherme de Azevedo, Jaime Batalha Reis, Oliveira Martins, Manuel Arriaga, Salomão Saragga e Teófilo Braga. Juntos, manifestavam as suas intenções de refletir sobre as mudanças políticas e sociais que o mundo sofria, de investigar a sociedade como ela era e como deveria ser, de estudar todas as ideias novas do século. Recusavam que Portugal continuasse alheado das novas ideias que circulavam pela Europa, à velocidade do vapor. Queriam "abrir uma tribuna onde tenham voz as ideias e os trabalhos que caracterizam este movimento do século, preocupando-nos sobretudo com a transformação social, moral e política dos povos; ligar Portugal com o movimento moderno, fazendo-o assim nutrir-se dos elementos vitais de que vive a sociedade civilizada (...)." .
Poucos dias depois, a 22 de maio, o Casino Lisbonense, localizado no n.º 10 do Largo da Abegoaria (hoje Largo Rafael Bordalo Pinheiro), em Lisboa, acolhia estes jovens de grandes ambições. Como Antero de Quental (autor da conferência inaugural) escreveu, numa carta a Joaquim Teófilo Braga, em abril desse ano, "temos um programa, mas não uma doutrina: somos associação, mas não igreja: isto é, liga-nos um comum espírito de racionalismo, de humanização positiva das questões morais, de independência de vistas, mas de modo nenhum impomos uns aos outros opiniões e ideias."
À conferência inaugural, seguir-se-iam, até 19 de junho, mais quatro: novamente Antero de Quental, com "Causas da Decadência dos Povos Peninsulares nos Últimos Três Séculos", ainda hoje considerado um dos textos mais influentes na cultura em Portugal nos séculos XIX e XX; Augusto Soromenho ("A Literatura Portuguesa"); Eça de Queiroz, ("A Literatura Nova") e Adolfo Coelho ("O Ensino"). Todas elas criticavam o status quo político, social e cultural português da época, as suas instituições, os seus valores, a sua visão do mundo, nomeadamente a Monarquia, a Igreja Católica, a Universidade de Coimbra, o sistema de ensino, o meio literário, a imprensa, o liberalismo económico e a organização social que lhe estava subjacente advinha, e o espírito conservador e acomodado do Portugal de então. No fundo, puseram em causa a "civilização" liberal, tal como existia há duas décadas em Portugal, e, por isso, não tardaram a encontrar resistências, como Eça já previra em As Farpas, a novíssima publicação onde partilhava as páginas com Ramalho Ortigão.
A 19 de junho, entre o público que assistia à conferência de Adolfo Coelho, encontrava-se um comissário da Polícia, que se apressou a enviar um relatório alarmado ao Governador Civil interino de Lisboa. Este, por o achar subversivo e pouco reverente para com as autoridades, fê-lo chegar ao Ministério do Reino, que por sua vez pediu um parecer ao Procurador-Geral da Coroa, Martens Ferrão, que, após analisar o tipo de ideias divulgadas à luz do Direito em vigor, entendeu que "são erróneas e ofensivas das leis, da Constituição e dos corpos do Estado as doutrinas expostas nas preleções a que me referi: que são assim um perigo para a sociedade. É por isso que o Governo não pode consentir que continue semelhante ensino, e deve proibi-lo". A 26 de junho, perante este parecer, e provavelmente assustado com o tema da conferência que se seguia, "Os Historiadores Críticos de Jesus", de Salomão Sáragga, - o marquês de Ávila e Bolama, chefe do Governo e ministro do Reino, assinava a portaria que proibia as Conferências do Casino. Os conferencistas reagiram contra a proibição com um protesto público, com o qual se solidarizaram vários intelectuais, como Alexandre Herculano, que acudiram em defesa da liberdade de expressão. Mas as portas do Casino não voltaram a abrir-se para tão irrequieto espíritos. @ DN
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