Hoje o CRESCER apresenta o oitavo texto do 10ºA, dos onze publicados no PÚBLICO. Faltam três. Um por dia...
Até amanhã
Querido diário,
Estamos cada vez mais perto do fim.
Hoje, dia 27 de setembro de 2122, quando acordei, o
meu relógio assinalava 11h00, o que me surpreendeu. (Desde que me mudei para a
Suíça, sempre acordei antes das 7h00).
Não dormi muito bem, ontem à noite um mau
pressentimento sussurrava no fundo da minha mente. Tentei ignorá-lo,
esquecê-lo, seguir com o meu dia. Não era a primeira vez que algo do género
acontecia. (Duvido que seja a última). A diferença era o facto de ter acordado
tão tarde. Normalmente, os sussurros não eram sussurros. Eram gritos que
seguiam um ciclo infinito: acordam-me a meio da noite e não me deixam voltar a
adormecer.
Infelizmente, a boa noite de sono foi apenas a calma
antes da tempestade. As notícias indicavam algo pior do que o normal: extinção
de algumas espécies; os perigos de que a Terra seria vítima se nada fosse
feito; e a tentativa falhada da Humanidade de fugir das consequências dos seus
atos. Sinceramente, não sei porque ainda me surpreendo. Se algum dia qualquer
destes tópicos não aparecer nas notícias, um milagre aconteceu.
Depois disso, apenas entrei no modo piloto automático
– estava na hora de trabalhar. (Hoje em dia, trabalhar em casa é muito mais
económico, pelo que eu faço exatamente isso). Todos os anos os salários
diminuem e os preços aumentam. Poucos são os que não passam por dificuldades
financeiras – talvez a exceção seja uns sobreviventes herdeiros de fortunas ou
líderes políticos. Falando nestes, acreditas que ainda entram em guerra por
coisas tão insignificantes? Há pouco tempo, os EUA declararam guerra à Alemanha
– algo sobre regimes políticos adversários. No entanto, o maior problema é a
população dos países em guerra e os seus vizinhos. (Acho ridículo a maneira
como eles agem, como se estivessem certos, como se não estivessem a piorar as
nossas vidas).
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desenho de Sofia Bessa, aluna do 5º ano da Escola Básica 2/3 Maria Manuela de Sá |
O meu relógio marcava 14h20, assim que terminei a
minha parte de trabalho do dia. Estava na hora de comer. Dirigi-me ao meu
frigobar, protegido pela mesa de jantar. Encontrei duas garrafas de água, um
pote de compota de abóbora que já estava a acabar (o presente de aniversário
que comprei a mim mesma) e os restos do jantar de ontem. Teve de servir. Não
fiquei cheia e eu sei que não me faz bem algum comer tão pouco, mas não há
muito que eu possa fazer quanto a isso.
Apenas uma hora mais tarde, saí de casa, rumo ao
supermercado. A pior parte do meu dia havia chegado – odeio ter de enfrentar a
realidade em que vivemos. O céu permanecia naquele tom cinzento que me lembrava
um metal prestes a ser afetado pela ferrugem. Não sei exatamente quando ou como
aconteceu, mas aquela cor sobrevoa as nossas cabeças há tempo suficiente para
que o antigo azul deixe de ser familiar. Observei as ruas. Os prédios pequenos
– iguais àquele onde vivo – estavam repletos de buracos que a chuva ácida havia deixado nos últimos dias.
A caminhada foi normal. A destruição e as poucas
pessoas, que pareciam não aguentar mais, foi tudo o que eu vi até chegar ao meu
destino. O supermercado diminui todos os dias, na tentativa de abrigar os que
haviam perdido as suas casas. Tudo o que consegui comprar com o restante do meu
dinheiro foi uma garrafa de água (a minha maior prioridade) e três maçãs. Não
fui capaz de evitar olhar para a secção de doces, agora vazia. Relembrei os
felizes e confortáveis momentos antes do incidente. Antes do início disto tudo.
Antes do lançamento da bomba.
O caminho para casa foi lento e doloroso. É por volta
desta hora que as crianças saem de casa à procura de comida e dinheiro. Querem
ajudar a sustentar as suas famílias. São nestes momentos que eu gostaria de ter
apreciado a minha juventude enquanto pude. Talvez assim, eu não me sentiria
desta forma. Quem é que eu quero enganar? Não são só os políticos e as pessoas
no poder que permitiram isto acontecer. Talvez – só talvez – se eu me tivesse
esforçado mais, se tivesse tentado mais, se tivesse prestado mais atenção, se
tivesse me voluntariado, talvez nada disto tivesse acontecido. Eu sei que eu
não poderia ter feito nada para prever ou parar isto. Mas estas crianças
merecem melhor e eu não consigo evitar culpar-me por elas não terem esse
melhor.
Assim que cheguei em casa, tentei ligar as luzes, mas
a escuridão continuou a envolver-me. Tudo pareceu mais frio. Tudo o que
consegui pensar foi a comida no frigobar e como ela se vai estragar. Decidi
guardar as compras e tomar um duche, mas nenhuma água caiu.
A minha energia acabou e dirigi-me ao meu espelho. Fiz
contato visual com um olhar como os das pessoas que vi mais cedo. Um olhar
cheio de cansaço e derrota, mas principalmente vazio, simplesmente vazio.
Exatamente como me sinto por dentro. Talvez seja verdade o que dizem: “Os olhos
são janelas para a alma” e a minha há muito tempo que desistiu.
Agora, estou deitada no conforto da minha cama (uma
cama de solteiro coberta por uma manta grossa). Estou à espera de que o sono me
engula e eu possa finalmente ter o meu momento de paz. Com sorte, amanhã eu não
acordarei.
Até amanhã (se tiver azar),
a alma que continua a escrever.
Joana Peixinho, 10º A