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sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

desafio: "onde estava no 25 de abril (de 1974)"? (6)

Tinha 20 anos, irmã de seis, andava na faculdade de Letras, dava aulas em Paredes e morava no Porto.

Este foi um dos anos mais felizes da minha vida.

De manhã, a camioneta saía às sete e dez da Trindade e desaguava em Paredes às oito e vinte, mais coisa menos coisa; à tarde, as aulas na faculdade, ao fim do dia, os ensaios do orfeão. Dias mais que perfeitos.

À noite havia, com alguma regularidade, uns colóquios quase clandestinos, organizados por professores da faculdade na Cooperativa Árvore, um espaço de debate e exposições, liderado por José Rodrigues. Os temas eram muito diversos e estimulantes: pintura, poesia, arquitetura, música, literatura, política. Os oradores, da nata dos oradores; oradores ostracizados pelo regime vigente. Eu não sabia nada disto.

Ficava, isso sim, maravilhada com aqueles diálogos inteligentes, com aquela cultura que desconhecia, com aquela gente toda tão diferente de mim. Fascinada com a qualidade das ideias e dos discursos que ali se produziam. Consciente da minha ignorância, mas deslumbrada.  Só queria que aquelas horas não acabassem nunca.

Até que um dia, sensivelmente um mês antes do 25 de Abril, José Augusto França, historiador e crítico de arte, foi o convidado da palestra. Quando chegámos à Árvore, as portas estavam encerradas e as pessoas permaneciam do lado de fora. Os organizadores movimentavam-se de um lado para o outro com algum nervosismo e iam pedindo que esperássemos um pouco. Ao fim de uns largos minutos, o professor Arnaldo Saraiva disse abertamente que a Pide tinha proibido o colóquio e encerrado as portas com cadeados. Os polícias insistiam “circular, circular” (frase que ouvira muitas vezes, quando frequentava o liceu e à saída das aulas ficávamos a conversar em pequenos grupos).

Ficámos por ali à espera. O ambiente cada vez mais tenso.  Até que um dos organizadores se juntou ao grupo para dizer que a palestra se ia realizar numa galeria de arte, disponibilizada por um elemento do público presente. E lá fomos todos a pé, das Virtudes até José Falcão, cantando em surdina.

Depois de acomodados, sentados pelo chão e nas poucas cadeiras disponíveis, estávamos finalmente prontos para a sedução das palavras. A conferência mal tinha começado quando entraram impetuosamente, naquele espaço exíguo, uma série de homens soturnos com cães enormes pelas trelas. Gritavam palavras desordenadas e diziam-nos que nos mantivéssemos nos lugares e nos identificássemos. Medo.  Muito medo. A Pide existia e estava ali. Foram momentos de pânico. Empurrões, gritos, violência. Algumas pessoas foram conduzidas para as carrinhas. As outras foram identificadas com perguntas perversas e humilhantes. Uma senhora desmaiou. Foi arrastada para o exterior sem que o marido a pudesse acompanhar. Outros choravam em silêncio. Dizia-se que “já tinham ficha na pide”.  Um dos nossos amigos foi levado para interrogatório. Ele e outros mais. Passou a madrugada e a manhã a ser interrogado com alguma brutalidade. Regressou triste e não saiu de casa durante dias. A nossa vida não foi mais a mesma. Também não houve mais colóquios na Árvore.

Felizmente o 25 de abril aconteceu pouco tempo depois.

Na viagem para Paredes, na manhã desse “dia inicial inteiro e limpo”, uma colega de música, que comigo dividia a jornada, perguntou sussurrando se tinha ouvido notícias. Notícias?  Sem telemóveis àquela hora madrugadora? Um cunhado de Lisboa telefonara-lhe e falara de movimentações na capital. Uma revolta de soldados que queriam depor o regime. Não se sabia ainda se era de esquerda ou de direita. Era preciso cautela. Enquanto as coisas não estivessem firmes, o melhor era ser discreto. Foi o que não aconteceu, logo nesse primeiro dia.


Quando chegámos à escola, só o deslumbramento e a vertigem. No cimo daquela escadaria de pedra, na aridez vetusta daquelas paredes cinzentas, oscilava impaciente uma bandeira vermelha (improvisada), nas mãos felizes de um colega de Educação Física. “Viva a Liberdade”, gritava ele, enquanto se lhe juntavam timidamente alguns dos professores que iam chegando.

Foi um dos momentos mais emocionantes, intensos e belos da minha vida.

Eu quero ser Abril outra vez.

Filomena Paupério

(docente de Português, atualmente aposentada)

2 comentários:

Aurélia Domingos disse...

Que bom rever-te Meninha, nas fotos e nas palavras. O teu semblante atual reflete a liberdade e a alegria ao reviver esses momentos históricos e inesquecíveis. Grande abraço.

Luzia Lemos disse...

O teu sorriso é, como sempre te conheci, um sorriso limpo, iluminado, franco e verdadeiro.
Tenho muitas saudades do nosso Abril em Águas Santas.
Beijinho, Filomena