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sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

desafio: "onde estava no 25 de abril (de 1974)?" (3)


Naquela manhã de quinta-feira, 25 de abril de 1974, como de costume, apanhei o comboio no apeadeiro da Palmilheira, saí em Campanhã e subi a pé a Rua do Heroísmo ou talvez Pinto Bessa. No Liceu Alexandre Herculano, equipei-me para a aula de "ginástica" que consistia, monotonamente, em jogar futebol num campo de jogos de chão em asfalto profusamente areado. As escoriações nas canelas, joelhos e nos braços, resultantes de uma queda, faziam desenhos listados na pele e eram as recordações mais perenes daquelas aulas...

 Naquele dia não caí. Ainda antes de acabar a aula, o nosso professor, que já estava na casa dos sessenta e vestia sempre como quem ia para uma festa de gala, veio ao campo e mandou-nos recolher ao balneário de imediato. "Vistam-se e vão-se embora para casa que hoje não há mais aulas." Explicações nenhumas. Só me lembrava de algo semelhante ter acontecido um dia em que houve a previsão de que um ciclone ia atingir o Porto.

Tinha 15 anos e desde os 12 que ia de Ermesinde para o Porto, de comboio, para o Liceu Alexandre Herculano. Nada que fosse incomum naquela época. Saímos do liceu a perguntarmos uns aos outros por que raio nos estavam a mandar embora, não que não fosse agradável ter um dia feriado, mas havia no ar uma apreensão desconfortável. 
No caminho para a estação e no comboio foi possível chegar a algumas conclusões: estava a haver um golpe de estado em Lisboa, eram militares, era para acabar com a guerra colonial, e isso foi o que mais me interessou. Naquela altura, já dois tios meus tinham passado pela guerra nas colónias e eu bem conhecia a ansiedade da família sobre a sorte deles na guerra e também no regresso. Conheci vizinhos que por lá ficaram e outros que regressaram como fantasmas deles mesmos, com aquilo que hoje chamamos síndrome pós-traumático e na altura se dizia "apanhados do clima". Eu já sabia que aos 18 anos o meu destino estava traçado e que na melhor das hipóteses ia bater com os costados a Moçambique, onde os meus tios tinham estado e onde tínhamos família que sempre nos poderia ajudar a passar aqueles dois anos. Também sabia que havia gente, mesmo colegas do liceu, que se opunham a esta guerra à qual chamavam guerra colonial que era uma expressão que não aparecia nos jornais nem era pronunciada na televisão. Eu conhecia os panfletos que apelavam ao fim da guerra colonial e que de vez em quando voavam nas escadas apinhadas de alunos a caminhar para as aulas depois dos intervalos. O contínuo, que todos diziam que era da PIDE, tentava em vão descobrir quem atirava os papéis ao ar e ao mesmo tempo ameaçava quem pegasse num deles. 

Apesar de as notícias ainda serem muito escassas, nesse dia eu alimentei a convicção de que não iria para a guerra e que íamos passar a viver em liberdade. À tarde juntamo-nos quatro amigos na casa de dois deles que eram filhos do concessionário/projecionista do cinema de Ermesinde e que, por isso mesmo, nos proporcionavam algumas borlas no cinema. Com eles aprendi o que era a não liberdade: os filmes vinham cheios de cortes e o pessoal assobiava durante as sessões sempre que os notavam. Poder ver os filmes sem cortes, era a Liberdade

Não foram precisos muitos mais dias para esta palavra passar a ser a mais importante dos meus anos de formação.

Cândido Pereira
(docente de Biologia e atual diretor do Centro de Formação maiatrofa)

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