Há perto de cinco anos, Michel Desmurget lançou uma frase no decorrer de uma entrevista à BBC que correu os meios de comunicação social. O autor, nascido em 1965, sublinhou “que os nativos digitais são os primeiros filhos a terem um QI inferior ao dos pais”. De acordo com Desmurget, “após milhares de anos de evolução, o ser humano está agora a regredir em termos cognitivos e de capacidades intelectuais - por culpa da exposição excessiva a ecrãs”. Com o livro A Fábrica de Cretinos Digitais, o investigador alertava para um fenómeno que sustentou em inúmeros estudos: “A profusão de ecrãs a que os nossos filhos estão expostos está longe de lhes melhorar as aptidões.” Michel Desmurget, via nesta circunstância consequências nefastas no que respeita à saúde, em termos de comportamento e no campo das capacidades intelectuais. Em 2024, o autor a trabalhar no Instituto de Ciências Cognitivas Marc Jeannerod, da Universidade de Lyon, regressa ao tema que lhe é grato, embora alicerçando o seu novo livro numa solução, Ponham-nos a Ler - A Leitura como Antídoto para os Cretinos Digitais (edição Contraponto). Ler por prazer, ler desde tenra idade, ler diariamente, ler para compreender - em todas estas dimensões o ato de leitura surge como o caminho para o desenvolvimento da linguagem, dos bons resultados escolares, de uma cultura geral sólida e da mobilidade social. Pretextos para uma conversa com o autor que esteve em Portugal a promover o seu mais recente livro.
Em 2019, publicou o livro A Fábrica de Cretinos Digitais, onde alertava para o perigo dos ecrãs nas crianças e adolescentes. Em 2024, na introdução que escreve para o seu novo livro refere que “o leitor é a antítese do cretino digital”. O que nos está agora a oferecer é o antídoto para o veneno do digital?
Acredito que sim, embora não seja um antídoto milagroso. Muitas atividades contribuem positivamente para o desenvolvimento do cérebro, como o desporto, a arte ou a música. No entanto, nenhuma tem impactos tão amplos, profundos e benéficos quanto a leitura. Embora os ecrãs com fins recreativos prejudiquem diligentemente o desenvolvimento dos nossos filhos, a leitura molda meticulosamente a sua humanidade. É provável que seja uma das poucas competências aplicáveis ao conceito muitas vezes evasivo de “aprender a aprender”. A leitura é uma porta única para o conhecimento. Veja a linguagem, por exemplo, é uma característica essencial da inteligência humana. No entanto, as suas formas orais permanecem um tanto limitadas. A sua verdadeira riqueza reside em livros que oferecem um vocabulário mais extenso e estruturas gramaticais mais complexas. Os livros ilustrados para crianças em idade pré-escolar contêm maior complexidade linguística do que quaisquer interações verbais comuns como conversas de adultos ou interações entre adultos e crianças, programas de TV, filmes, séries, desenhos animados, entre outros. Numerosos estudos demonstram que os formatos escritos são muito mais eficazes do que os seus homólogos áudio e audiovisuais para a aprendizagem de conteúdos complexos. Nessa perspetiva, os livros são insubstituíveis.
O título do seu novo livro subentende que devemos pôr as crianças a ler. Não está, também, com este título a apelar à consciência dos pais para se tornarem leitores?
Escuto muitas vezes esse comentário. Em primeiro lugar, o título não é uma ordem; em vez disso, é um apelo sincero a favor da leitura. Genericamente, o que nos diz exatamente esse comentário? Que os pais são demasiado tolos ou frágeis para serem informados? Será a ignorância preferível ao conhecimento para o “público em geral”? Deveríamos evitar discutir a natureza cancerígena do tabaco, os estragos do alcoolismo ou as alterações climáticas porque isso parece induzir a culpa? Na prática, numerosos estudos demonstram o impacto altamente positivo das abordagens informativas no desenvolvimento infantil. Quando os pais são informados, quando compreendem por que é crucial falar bastante com os filhos, ler-lhes histórias desde as primeiras semanas de vida, e assim por diante, os impactos são substanciais. Isto continua a ser verdade em famílias desfavorecidas, mesmo quando os pais têm dificuldade em ler e dependem de livros ilustrados. Uma pesquisa mostrou que esse tipo de abordagem, aplicada durante o primeiro ano da criança, leva a um ganho de vocabulário de 40% aos 18 meses. Por outras palavras, ao informar os adultos, ajudamos direta e eficazmente as crianças.
O que é um leitor competente?
Com frequência equiparamos a leitura a descodificação. Trata-se de um erro grave. A descodificação é necessária, mas é insuficiente. Se eu jogar ténis, vou precisar de uma raqueta, mas não é a raqueta que faz o jogador. O mesmo se aplica à leitura. Ler é compreender. Esta verdade talvez tenha sido enfatizada com mais vigor pelo filósofo alemão Hans-Georg Gadamer quando declarou: “Ler é compreender; quem não entende não lê de verdade.” Está tudo lá. Um leitor competente é alguém que possui mecanismos de descodificação automatizados, mas, mais importante, alguém que aprendeu a linguagem dos livros; uma linguagem que, como já foi dito, é muito mais rica e complexa do que a linguagem oral. Em última análise, são necessários quase 20 anos para se tornar um leitor proficiente. Um leitor experiente lê em média 280 palavras por minuto. Estudos de acompanhamento revelam que os alunos mais dedicados só atingem este limiar no final do Ensino Secundário. Afinal de contas, é tudo uma questão de volume. Aceitamos prontamente que uma criança que frequenta aulas de violino todas as quartas-feiras não se tornará um violinista especialista se apenas praticar durante essas sessões. O mesmo princípio é aplicável à leitura. Uma criança que só lê o que é exigido na escola nunca se tornará um leitor eficiente.
Como escreve no seu livro, ler “salva”, “liberta”, “fortalece”, “protege do desespero e do tédio”. Podíamos continuar com toda a lista de benefícios tangíveis e intangíveis associados à leitura. No entanto, os leitores de livros extinguem-se. Por que estamos a renunciar aos livros? Porque nos pedem tempo e concentração?
As palavras que cita são expressões de leitores a explicar o que a leitura lhes trouxe. O declínio do número de leitores, especialmente entre as gerações mais jovens, está agora firmemente estabelecido. A causa deste declínio não é difícil de identificar, é tudo uma questão de tempo. O tempo é um recurso limitado. Ao longo dos últimos 50 anos, os ecrãs, inicialmente os da televisão, diversificaram-se e proliferaram amplamente nos videojogos, redes sociais, sites de streaming, entre outros, exercendo agora uma hegemonia selvagem sobre os tempos livres das crianças. A leitura é uma das grandes vítimas desta evolução, ao lado do sono e do volume de interações familiares. Em França, ao longo do último meio século, a proporção de “leitores ávidos” [jovens que leem, pelo menos, 20 livros por ano; o equivalente a 20 a 30 minutos por dia] caiu de 35% para 11%. Nos Estados Unidos, a percentagem de leitores diários de livros ou revistas caiu de 60% para 16%. Os estudos do PISA [Programa Internacional de Avaliação de Alunos] indicam que 50% dos estudantes do Ensino Secundário nos países da OCDE só leem se forem obrigados a fazê-lo. Um terço acredita que a leitura não serve para nada. Neste domínio, como em muitos outros, a recompensa corresponde ao esforço: substancial para a leitura, insignificante, e muitas vezes negativa, para conteúdos digitais recreativos.
Os defensores do digital dirão que este gera inúmeros suportes de leitura. É fácil desmontar este argumento?
É um argumento simplesmente ridículo. A leitura representa apenas 2 a 3% do tempo total despendido nos ecrãs. Além disso, estudos revelam que esse tempo é dedicado a conteúdos tão empo- brecidos que o seu impacto no desenvolvimento da linguagem oscila entre insignificante e negativo, para crianças e adolescentes. Um estudo de síntese abrangente foi publicado recentemente sobre este tópico. O impacto da leitura digital nas habilidades de compreensão escrita foi avaliado no sentido mais amplo, incluindo blogues, redes sociais, fóruns de discussão, e-books, pesquisas de informação. Os autores concluem: “Há associações positivas entre a frequência de leitura de textos impressos e a compreensão. Descobrimos que tal associação é quase nula quando se trata de leitura de textos digitais.” Os resultados do PISA confirmam esta conclusão ao revelar um efeito negativo da leitura digital na compreensão da leitura.
Hoje, também é palavra de ordem dizer-se que a leitura não é necessária para se desenvolver uma carreira académica e desenvolver uma vida profissional de sucesso. Isto, leva-me à pergunta: o que perdemos quando não lemos?
À escala individual, o custo de abandonar a leitura é enorme. Na verdade, a leitura é uma ferramenta poderosa para construir a inteligência em todas as suas dimensões. Os seus efeitos positivos, apoiados pela investigação, estendem-se ao quociente intelectual (QI), à linguagem, aos conhecimentos prévios, à concentração, à imaginação, à criatividade, bem como às capacidades de expressão escrita e oral. Mas isto não é tudo. A leitura também afeta a nossa inteligência emocional e social. Através dos livros, o leitor entra literalmente na psique das personagens. Posso tornar-me uma mulher adúltera sendo Emma Bovary [protagonista do livro Madame Bovary], ou posso ser Raskólnikov torturado até a loucura em Crime e Castigo. Muitos autores, como o francês Marcel Proust, enfatizaram a capacidade de os romances não apenas nos ajudarem a compreender, mas também de vivenciar as emoções das personagens. A isso se deve que a leitura de ficção tenha impactos positivos na empatia e, de forma mais ampla, na nossa capacidade de nos compreendermos e aos outros. Em última análise, todos estes benefícios têm um impacto significativo no sucesso académico e no futuro profissional das crianças.
Referiu a escala individual. O que perde a sociedade no seu todo por não lermos?
Em primeiro lugar, um funcionamento social mais pacífico. Podemos observar que as nossas sociedades, em muitos aspetos, estão em rutura. Através do seu impacto na empatia, na tolerância e na compreensão dos outros, a leitura é um pilar essencial da nossa humanidade e da nossa capacidade de coabitarmos. Atua como um óleo calmante dentro da maquinaria social. Mas isso não é tudo. Numerosos estudos demonstram que o desenvolvimento económico de um país está intimamente ligado ao desempenho educativo das suas crianças. Esta questão é crítica num contexto de concorrência internacional intensificada, especialmente quando consideramos, com base em avaliações internacionais como o PISA, que a disparidade de desempenho aumenta perigosamente entre os países da OCDE e os países asiáticos. A leitura, como vimos, é essencial para o desempenho académico devido à sua influência na linguagem, no conhecimento geral, na concentração, no pensamento crítico, nas regulações emocionais. O atual declínio no desempenho académico dos nossos filhos ameaça significativamente a nossa prosperidade económica a longo prazo.
A edição portuguesa ao seu livro tem prólogo de Regina Duarte, Comissária do Plano Nacional de Leitura. Escreve algo que o Michel também afirma no livro: “A esmagadora maioria das crianças adoram que lhes leiam.” Se gostam que lhes leiam por que não se tornam muitas dessas crianças leitoras?
Porque a transição da leitura partilhada para a leitura individual é difícil e muitas vezes frustrante. É uma passagem que exige esforço. Por isso é importante acompanhar a criança o maior tempo possível e manter a leitura compartilhada, mesmo quando a criança começa a ler de forma independente. Esta leitura partilhada tardia permite abordar textos um pouco mais complexos e ajuda a manter o prazer. Sem prazer não pode haver leitor. Também devemos considerar o impacto dos ecrãs. Se estes dominarem todo o tempo disponível, não sobrará nada para leitura. Portanto, é essencial garantir tempo para a leitura, limitando a omnipresença dos ecrãs recreativos. Claro, devemos evitar promessas como “se leres um pouco, poderás assistir a uma série ou jogar na consola”. Estas abordagens são profundamente prejudiciais, porque transformam a leitura num purgatório e os ecrãs num paraíso.
Em muitos inquéritos, a maioria das pessoas admite gostar de ler. Mas, a prática revela o oposto. Se as pessoas associam a leitura a “estatuto” intelectual, encontra explicação para o facto de não a materializarem?
Quando perguntamos às pessoas, independentemente da sua idade, muitas explicam que adoram ler, seja porque é realmente o caso ou porque a leitura tem um elevado nível de desejabilidade social, e é sempre gratificante identificar-se como leitor. Isto, embora esta tendência também esteja a mudar aos poucos, com a leitura sendo cada vez mais associada a ser-se um nerd. Mas, fundamentalmente, a questão não é se as crianças, ou os adultos, gostam de ler; é se esta atividade é uma prioridade para eles.
Menos hábitos de leitura nos jovens vão traduzir-se, eventualmente, em adultos que não vão ler, ou que lerão pouco. Alguns destes alunos serão os futuros professores. Consegue antever no que se pode tornar a escola neste cenário?
Estudos indicam que muitos professores tendem a atribuir menos leituras e a optar por textos menos complexos, privilegiando materiais áudio e audiovisuais. Ao abandonar os livros, estamos a renunciar ao pleno desenvolvimento da inteligência e o pensamento profundo dos nossos filhos. O problema é ainda mais profundo. O declínio na leitura está agora a afetar as populações de professores. Estudos revelam claramente que os professores que leem e valorizam a literatura são também os mais capazes de a ensinar e de incutir o amor pela leitura nos seus alunos. É aqui que o ciclo se autoperpetua: alunos sem inspiração tornam-se professores que irão debater-se para conseguir desenvolver a paixão pela leitura nos seus próprios alunos. É difícil não pensar na famosa frase do escritor Ray Bradbury que, há 30 anos, escreveu: “Não é necessário queimar livros para destruir uma cultura. Basta que as pessoas parem de ler.” Encontramo-nos nesta situação e, se não reagirmos rapidamente, o desastre poderá em breve tornar-se irreversível. Fonte: DN
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