O aumento de doenças mentais é uma consequência de mais tempo passado entre ecrãs e menos noutras atividades ou estamos apenas a assistir a uma evolução na forma como crianças e jovens crescem, mas sem que deva existir alarme com o uso excessivo da tecnologia? A discussão alarga-se a pais, professores e sociedade em geral. Dois livros publicados em 2024 apresentam perspetivas diferentes.
Depois da pandemia de Covid-19, a epidemia da (falta) de saúde mental. Os confinamentos e medidas de restrição social por causa de Covid 19 têm sido apontados como um dos fatores para a degradação da saúde mental, sobretudo entro mais jovens, mas, para vários psicólogos e investigadores, há dados que mostram que, na realidade, o aumento de problemas como ansiedade e depressão e as suas consequências mais graves, acontece ao longo da década que precedeu a pandemia. E um dos fatores que têm apontado é a coincidência desta degradação da saúde mental dos mais jovens com o aparecimento do smartphone [o iPhone foi lançado em 2007] e das redes sociais [Facebook é lançado em 2004]. Em vários estudos é referido um denominador comum: a redução de contacto interpessoal [nos anos 2000, um adolescente estava em média 3 vezes por semana com amigos; hoje essa média desceu para 1,5] e o aumento de tempo de ecrã [em média, 4,8 horas por dia em apps de redes sociais, sobretudo TikTok e Instagram]
A discussão é alargada, mas alguns
temas têm sido bastante discutidos e não têm a ver só com tecnologia. O elevado
protecionismo às crianças começa a partir da segunda metade da década de 80 e
também teve impacto em menor autonomia e independência, seja na forma como as
crianças vão para a escola, seja na liberdade de brincar ao ar livre.
Da discussão académica aos fóruns
de pais e professores, algumas ideias têm conquistado especial atenção:
- Não dar
smartphones a crianças e jovens antes do secundário
- Não
deixar as crianças e jovens terem redes sociais antes dos 16
- Banir
smartphones do recreio das escolas
- Aumentar
tempo livre, realmente livre, das crianças para brincar e para não fazer
nada (mesmo que se aborreçam)
Um livro do psicólogo Jean Twenge, publicado em 2023, “Generations”, percorreu inquéritos em vários países para identificar causas desta mudança e outro, publicado este ano, “A Geração Ansiosa”, do psicólogo social Jonathan Haidt e editado em Portugal pela Dom Quixote - procura também explicações para o que está a acontecer com a saúde mental dos adolescentes americanos. O livro parte de dados que, na análise do autor e psicólogo, mostram que a saúde mental dos adolescentes caiu a pique no início da década de 2010. As taxas de depressão, ansiedade, automutilação e suicídio aumentaram acentuadamente, mais do que duplicando em muitos indicadores e a pergunta a que procura responder no livro é porque razão isto aconteceu. Na apresentação do livro refere-se que “Haidt mostra como a infância baseada na brincadeira começou a declinar na década de 1980 e como foi substituída, no início dos anos 2010, com a chegada da infância baseada no telemóvel. Apresenta mais de uma dúzia de mecanismos de como esta grande reconfiguração da infância interferiu no desenvolvimento social e neurológico das crianças, abrangendo tudo, desde a privação do sono à fragmentação da atenção, dependência, solidão, contágio social, comparação social e perfecionismo”.
O autor explica ainda por que razão as redes sociais prejudicam mais as raparigas do que os rapazes e porque é que os rapazes têm vindo a retirar-se do mundo real para o mundo virtual, com consequências desastrosas para si próprios, suas famílias e sociedade. À semelhança do que Michel Desmurget faz no livro “Ponham-nos a ler -A leitura como antídoto para os cretinos digitais”, também Jonathan apela à ação e propõe quatro medidas melhorar que envolvem pais, professores, escolas, empresas de tecnologia e governos “para acabar com a epidemia de doenças mentais e restaurar uma infância mais humana”.
Jonathan Haidt é dá aulas de
Liderança Ética na Stern School of Business da Universidade de
Nova Iorque. Fez doutoramento em Psicologia Social pela Universidade da
Pensilvânia em 1992 e lecionou na Universidade da Virgínia durante dezasseis
anos. A sua investigação centra-se na psicologia moral e política, tema do seu
livro The Righteous Mind. [“A mente justa”]
“Não se assustem”
A discussão está longe de ser consensual, mesmo entre especialistas e académicos. O pediatria americano Michael Rich que lidera um programa que trata crianças com adição à internet – termo que já afirmou publicamente detestar. No livro que também publicou recentemente “The Mediatrician's Guide: A Joyful Approach to Raising Healthy, Smart, Kind Kids in a Screen-Saturated World” [“mediatrician é como se chama a si próprio e àquilo que faz], o medico relembra que as crianças de hoje irão crescer e ser adultas com um smartphone e que o mais importante é que aprendam a lidar com essa tecnologia. "Existem muitas pessoas que utilizam estas ferramentas de forma bastante eficaz, de maneiras que realmente melhoram o seu humanismo, educação e ligação,"afirmou em entrevista à Axios. Defendendo a necessidade de “um tempo de descanso digital”, o pediatra argumenta que o “absoluto não” também não é resposta.
"Deixem de lado a ilusão de que é possível impor limites de tempo de ecrã ou mesmo medir o tempo de ecrã no ambiente mediático de hoje. Mais importante ainda, deixem de lado a culpa por não conseguir restringir o tempo dos seus filhos nos ecrãs " defende no seu livro, considerando que “essa energia é melhor gasta ajudando o seu filho a aprender a usar os ecrãs de maneira saudável e produtiva — e aprendendo a substituir os limites diários de tempo de ecrã por mínimos diários de atividades sem ecrã". A maioria das crianças que têm problemas com telefones e ecrã, segundo Michael Rich, sofre de uma de quatro condições: défice de atenção e hiperatividade, ansiedade social, autismo ou depressão. Por seu lado, as crianças que têm essa condição podem, com mais facilidade, ter outro tipo de distúrbio que designa como “Uso Problemático de Media Interativa”que inclui jogo excessivo de vídeo ou de tempo em redes sociais, uso obsessivo de pornografia online ou "consumo excessivo de informações" (por exemplo, navegar no Reddit, YouTube ou outros sites durante horas, excluindo outras atividades). O pediatria defende que o tempo excessiva de ecrãs, nestas crianças, é muito mais um sintoma da sua condição do que a causa e alerta que os temas de saúde mental também se tornaram mais visíveis pelo simples facto de se falar mais deles.
"The Mediatrician's Guide: A Joyful Approach to Raising Healthy, Smart, Kind Kids in a Screen-Saturated World" é baseado na experiência do autor como fundador e diretor do Digital Wellness Lab no Hospital Infantil de Boston e da Clínica de Media Interativa e Transtornos da Internet, um programa de tratamento para crianças. E é precisamente essa experiência que evoca para dizer que os problemas não se tornaram piores por causa do tempo de ecrã, mesmo que defenda a necessidade de educar para a sua utilização. Uma opinião divergente das de Jean Twenge e Jonathan Haidt, para quem os telemóveis e as redes sociais são causas primárias da degradação da saúde mental entre os mais novos, numa discussão que se alarga um pouco por todo o mundo, sobretudo ocidental. Fonte: Sapo
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