Paulo Prudêncio |
Antes do mais, recorde-se que mudámos de milénio ancorados na sociedade em rede e com esperança numa economia como a "maré enchente que faria subir todos os barcos". A internet generalizava-se. Usava-se software com vasto alcance administrativo. As atmosferas organizacionais melhoravam. Crescia a produtividade. Desejava-se mais tempo livre. Não se rivalizava a tecnologia com a natureza. O humano era o centro do meio ambiente político e económico.
Contudo, Manuel Castells, o sociólogo optimista da viragem do milénio ("A galáxia da internet" e "A sociedade em rede"), alertava, em 2023, para uma mudança veloz: "muita gente aceitou o advento da internet como uma tecnologia de liberdade e libertadora. Só que "livre" nem sempre significa "boa"."
E a Educação espelhou um lado negativo dessa mudança. Acima de tudo, pelos excessos no uso da internet e na exposição ao "enxame digital" das "gigantes da web que nos querem controlar" (cf. Naomi Klein). Quando, em 2019, se conheceu a sua hierarquia de investimentos - ensino à distância, 5G, telemedicina, drones e comércio online -, temeu-se a abertura de mais espaço ao isolamento físico e à adicção tecnológica de crianças e jovens, e que, noutra perspectiva da mesma família, a engenharia financeira e sociológica reduzisse o número de professores através da tele-escola 2.0. A aceleração digital na pandemia confirmou o temor: identificou-se de imediato os efeitos dos assistentes educativos digitais desde os primeiros anos de vida e do ensino à distância.
Mas já era tarde para a maioria das democracias ocidentais. Em Portugal, só em 2022 se assumiu a falta estrutural de professores e os excessos no uso de telemóveis e afins. O estado de negação foi longo e o pêndulo da condição humana começou a oscilar entre a euforia e o pânico. Agora, é crucial perceber as ligações, e as tensões, entre as duas crises, analisar cada uma e acelerar o tempo de recuperação.
No flagelo da falta de professores, negligenciou-se o clima escolar como o cerne da fuga. Os partidos do "pacto de regime para a Educação" - que vigora desde os primórdios deste século e que colocou em regressão os notáveis progressos preparados nos 30 primeiros anos da democracia -, nada aprenderam. Veja-se, como síntese da fatal desconfiança nos professores, o debate na Assembleia da República, no dia 21 de Junho de 2024, sobre a burocracia insensata a propósito do projecto MAIA.
Agravou-se, porque esse pacto fez dos professores guardadores das crianças e jovens. A trágica "escola a tempo inteiro" retirou a sociedade das responsabilidades educativas. Eliminou as crianças, e as suas livres brincadeiras, do espaço público. Impôs-lhes horários fabris de 40 a 50 horas semanais na escola, com curtos intervalos brutalmente silenciados pela adicção tecnológica, e empurrou para o esquecimento educativo as 128 ou 118 horas semanais fora da escola.
Portanto, quando li na capa do Expresso, de 24 de Maio de 2024, que "há crianças de 11 anos dependentes de pornografia online; em Portugal, 40% dos rapazes e 26% das raparigas entre os 9 e os 16 anos já viram conteúdos pornográficos através de pesquisas online", esperei, em vão, pelo imediato alarme mediático. Em vão porque estes dados do "EU Kids Online", financiado pela Comissão Europeia, são de 2019 - imagine-se agora - e inaudíveis nas sociedades da "escola a tempo inteiro". As bolhas política e mediática só se alarmam se puderem culpar as escolas e os seus professores.
No mesmo âmbito, o Conselho da União Europeia agendou o desespero com os influenciadores das redes sociais (estude-se Andrew Tate). São, de longe, os mais "googlados". Radicalizam os adolescentes em valores misóginos e de obediência violenta das raparigas. Os jovens seguem-nos, como o farão na altura de votar numa cultura política sociopata, insensível ao sofrimento, alimentada pelo ódio e sem qualquer sinal de empatia.
Seria imperdoável não combater estruturalmente estas crises. Na falta de professores, comece-se pela confiança. Esse regresso exige um corte epistemológico com a vigente incomunicabilidade entre as ciências da educação e as da gestão e administração. Altere-se radicalmente teorias, conceitos e métodos. O professor e a pedagogia têm que liderar uma gestão escolar propriamente dita, que desespera por "Reconhecimento de Padrões" no tratamento de dados e não tanto no ensino; e elimine-se os modelos autocratas de gestão e avaliação de escolas e de professores.
Aliás, só escolas plenamente democráticas elevarão o respeito pelos direitos fundamentais; embora exijam professores doentes de esperança e alunos livres de adicções. Para isso, actue-se na entrega, na sociedade e na escola, das crianças e jovens à selva digital, e não se use a IA como a inevitabilidade da sociedade do futuro. Já nem é tão consensual que projecte a economia para outro patamar de produtividade, ganhos e distribuição. Pelo contrário, como defende Daron Acemoglu, co-autor do célebre "Porque Falham as Nações" (e, já agora, falham quando desinvestem na Educação).
Em suma, não se deixe este legado. Que, daqui a uma ou duas gerações, nenhuma adolescente portuguesa de 14 anos diga, como em 2023, a um canal televisivo sobre a proibição de telemóveis: "ai agora? Mas agora já está tudo agarrado"."
texto de Paulo Prudêncio*, no seu blogue "Correntes", depois de publicado no PÚBLICO
*Paulo Prudêncio é um dos rostos da luta dos professores pela recuperação do tempo de serviço, chamado muitas vezes às televisões para comentar cenários. Mas, para além desse período mais mediático, é um blogger de referência na área da Educação desde o dia 25 de abril de 2004, com o seu "Correntes". Determinado, goza, a partir do dia 1 de julho de 2024 , a sua aposentação voluntária, mantendo, contudo, a sua atividade como blogger.
Obrigado, Paulo, por toda a sua luta e clarividência! Vamos continuar a acompanhá-lo.
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