Com vários países a voltarem atrás na digitalização das aulas, em Portugal docentes e estudantes defendem manuais digitais apenas como complemento à aprendizagem. A favor do progresso, mas "contra o retrocesso intelectual" provocado pelo uso excessivo de tecnologia.
Suécia, Dinamarca, Reino Unido e Noruega são alguns dos países que, após defenderem uma maior presença dos manuais digitais em sala de aula, decidiram dar um passo atrás. Por cá, este ano letivo, mais de 20 mil alunos, do 3º ao 12º ano, de 160 escolas vão estudar com manuais digitais. Trata-se da quarta fase do Projeto-piloto lançado pelo Governo para substituir gradualmente os livros em papel. Números que quase duplicam os alunos abrangidos, face ao ano passado. No ano letivo 2022/2023, o estudo com manuais digitais chegou a 11.437 alunos de 575 turmas, de 68 agrupamentos escolares e escolas não agrupadas. O ministro da Educação, João Costa, tem-se manifestado como um defensor do livro em papel, mas ainda sem anunciar medidas de travão em relação ao plano traçado para a substituição dos livros em papel, até 2026. Recorde-se que, também no ano escolar anterior, mais de 250 mil alunos do 2.º, 5.º e 8.º anos de escolaridade realizaram, pela primeira vez, as provas de aferição em formato digital. Uma decisão contestada por pais, professores e diretores escolares.
Alberto Veronesi, consultor pedagógico e professor de 1º ciclo, critica o aumento do digital nas escolas e acusa João Costa de revelar "uma enorme inaptidão para ocupar a pasta da Educação", desfasada das reais necessidades dos alunos. "A pasta que devia ser ocupada por alguém com competência, tem, com António Costa, sido entregue a ineptos. Foi assim com Tiago Brandão Rodrigues e é assim também com João Costa. Por esse motivo temos sido presenteados com revelações que são pouco realistas, desfasadas da realidade e pouco ou nada sustentadas em estudos académicos", acusa.
O docente estranha a aposta nos manuais digitais por parte do ministro, pois "sendo também ele um académico, devia valorizar mais a ciência". "Este caso dos manuais escolares é um bom exemplo disso. A ciência mostra-nos mais desvantagens do que vantagens e, por esse motivo, estou absolutamente contra a massificação dos manuais digitais. O desfasamento de que falei há pouco é o de ignorar a precariedade da maioria das ligações de internet existentes nas escolas que permitam que 20 turmas e 600 dispositivos estejam ligados ao mesmo tempo à internet. Só na realidade paralela de João Costa é que isso seria possível", explica.
O consultor pedagógico sustenta a argumentação em vários estudos publicados nos últimos anos, como o da "Universidade de Calgary (2019), onde se concluiu que o uso excessivo de ecrã nas crianças pequenas estava associado a um menor desenvolvimento da linguagem expressiva" ou outro, da Universidade de Toronto (2018) , "que sugeriu que o uso excessivo de dispositivos eletrónicos em crianças em idade pré-escolar estava associado a atrasos no desenvolvimento da fala e da linguagem".
Alberto Veronesi alerta para essas conclusões, com principais incidências negativas nos mais pequenos, para os quais o "uso excessivo de dispositivos digitais pode interferir no desenvolvimento cerebral normal, especialmente nas áreas relacionadas à atenção, memória e controlo impulsivo, assim como nas habilidades de comunicação das crianças". E as desvantagens, diz, não se ficam por aqui. Há, segundo o professor do 1º ciclo, um prejuízo "na concentração da atenção, pois os estímulos digitais intensos e imediatos acabam por prejudicar a capacidade de as crianças se envolverem em atividades que exijam uma maior atenção sustentada". "Até pode interferir na qualidade e na quantidade de sono das crianças. E como é do conhecimento comum, a privação do sono está associada a uma série de problemas de saúde física e mental, incluindo dificuldades de aprendizagem e falta de concentração", continua. Alberto Veronesi alerta ainda para uma das maiores preocupações enquanto professor dos mais pequenos: "a degradação das habilidades sociais e emocionais".
Apesar da sua posição crítica, o consultor pedagógico não deixa de encontrar algumas vantagens do digital, "numa era em que o conhecimento e o domínio das tecnologias são essenciais e a capacitação digital da população é importante".
Suécia regressa aos manuais em papel
A ministra da Educação sueca, Lotta Edholm, que assumiu o cargo há menos de um ano, foi uma das maiores críticas à adoção generalizada da tecnologia nas escolas e revelou a intenção de reverter a decisão da Agência Nacional de Educação de tornar obrigatórios os dispositivos digitais nos jardins-de-infância, acrescentando que pretendia acabar com a aprendizagem digital para as crianças com menos de 6 anos. A decisão sueca reabriu o debate na comunidade escolar portuguesa, onde, nos últimos dias, muitas vozes se têm manifestado contra a excessiva digitalização do ensino. "Acho que nós, os professores, temos de ter uma palavra a dizer sobre este assunto. Devemos ser capazes de resistir a este deslumbramento. Com tantos estudos a sustentar o recuo, assim como países que estão a recuar como a Suécia, não vejo razão para Portugal dar o passo em frente. E ser contra esta e outras medidas não é ser contra o progresso. É ser contra o retrocesso intelectual", afirma Alberto Veronesi.
Sandra Paulo, professora de Matemática do Ensino Secundário, assume não gostar de manuais digitais, "se estivermos a pensar nele como instrumento único de trabalho para o aluno/professor". Para a docente, os manuais digitais fazem sentido "em complemento ao manual em papel". "Gosto de papel, de rabiscar, sublinhar, de manusear, de folhear, é palpável e acessível. Com os manuais digitais em exclusivo, e em tenra idade, os miúdos perdem a motricidade fina, criam uma dependência agravada da tecnologia, agravam-se problemas de saúde causados pelo número de horas passados em frente a um ecrã e ficamos dependentes de recursos tecnológicos para aceder aos mesmos", justifica.
A professora relembra ainda a dificuldade acrescida na disciplina que leciona, "na resolução de problemas e exercícios, se o aluno tiver que consultar mais do que um manual em simultâneo, por exemplo". Reconhece, contudo, algumas vantagens, "como o acesso a conteúdos que os manuais físicos não permitem (vídeos, áudios, quizz, ...) e a poupança ecológica que permitem (mas cuja saúde humana também comprometem)". "Em suma, podemos e devemos aproveitar as tecnologias, sem nunca deixar de ser críticos em relação ao custo/benefício e não fazer delas o centro do processo de ensino e aprendizagem. Não nos podemos esquecer, enquanto educadores, que o recurso aos meios digitais ainda não é uma realidade acessível a todos os alunos e que potenciam um agravamento de desigualdades e oportunidades", alerta.
"Escolas precisam de estar devidamente equipadas"
Paulo Guinote, professor de História de 2º ciclo, não se manifesta totalmente contra os manuais digitais, mas sustenta que não podem ser tomadas decisões vinculativas, "enquanto escolas, alunos e professores não estiverem devidamente equipados para a utilização de manuais digitais". Segundo o docente, enquanto todas as escolas não estiverem devidamente equipadas, a introdução da substituição dos livros em papel pelos digitais será "prematura". E a acontecer como está previsto, diz, "essa introdução deverá ser sempre em modo voluntário e não obrigatório, conforme os contextos, práticas e projetos educativos das escolas e mesmo das turmas, evitando-se o efeito moda e a tentação de uma nova e muito rentável área de negócio, que não devem ser prioridades quando se trata de escolher o melhor para o trabalho com os alunos".
Referindo-se ao caso sueco, Paulo Guinote explica tratar-se de "uma sociedade que avança em alguns aspetos muito rapidamente, mas faz uma devida avaliação das políticas e inflete-as quando necessário" o que, sublinha, não acontece em Portugal, onde "é a alternância entre grupos instalados no poder que muda as políticas de acordo com os seus interesses, e não uma avaliação ponderada da realidade". Pede, por isso, ponderação nas decisões do ME e defende que se combinem "as ferramentas que vão surgindo com as existentes, não apostando tudo apenas num só suporte".
"Mais horas do dia a olhar para um ecrã não me agrada"
Ari Ferreira é aluno de 11º ano, no Agrupamento de Escolas do Cerco, no Porto, e leva o computador para a escola, pelo menos uma vez por semana. Utiliza-o para aceder à internet, fazer pesquisas e trabalhos e como apoio para a organização da sua agenda académica. Faz ainda uso dos "recursos disponibilizados em formato digital, como vídeos, powerpoints, jogos, entre outros, embora esses mesmos recursos "sejam disponibilizados de graça no EV Smart Book há algum tempo". Já no que se refere aos manuais digitais, o jovem aponta como vantagem principal "levar menos livros na mochila", evitando o "sobrepeso".
Questionado sobre a vontade do Governo em substituir os livros em papel, é perentório em afirmar-se contra. "Entendo que seria bom para diminuir o gasto de papel, mas o facto de termos mais horas do dia a olhar para um ecrã não me agrada nada. A sala de aula, o professor, os colegas e os materiais são quase um refúgio da frenética e doentia tela dos telemóveis que não só nos minam o sono como nos deixam ansiosos por mais entretenimento rápido", explica. Ari Ferreira sente os livros como " um refúgio, onde sentimos o cheiro e temos o toque físico do manual e do caderno". Uma forma de, conta, "sair dessa repetida rotina de escrever num teclado e de praticar a escrita à mão, saindo daquele buraco negro de informações do feed". Ari Ferreira salienta ainda querer manter alguma distância da tecnologia em sala de aula e da "tentação de abrir uma aba ao lado para ir ao Instagram". E afirma: "Se pudesse escolher, continuaria com os livros em formato impresso".
Diretores querem debate alargado
Filinto Lima, presidente da direção da Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos e Escolas Públicas (ANDAEP), pede um "debate alargado em torno desta temática", de modo a perceber se o caminho a seguir é, ou não, o do fim dos livros em papel. "Todos devem ser convocados e as opiniões devem ser valorizadas", acrescenta. O diretor da ANDAEP acredita ser importante não impor, numa primeira fase, a generalização dos manuais escolares digitais, mas aponta muitas vantagens na sua utilização. Segundo o responsável, "promovem a maior motivação para a aprendizagem dos alunos, pois usam um instrumento que dominam e gostam; diminuem o peso das mochilas e contribuem para um ambiente cada vez mais ecológico e saudável. A maior desvantagem, diz, é o aumento do número de horas em frente a um écran, tendo em conta que os alunos já passam muitas horas diante de um telemóvel ou da televisão".
Filinto Lima considera relevante olhar para aquilo que se passa nos países "com mais experiência do que o nosso e que já estão neste processo há anos", mas trilhando o próprio caminho. "Portugal deverá seguir o seu caminho, promovendo debates relativamente ao tema. Não devemos ser fundamentalistas nas ações a empreender, antes devemos dar passos firmes e seguros, acompanhando o evoluir da sociedade", conclui. @ DN
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