Pertenço à geração mais bem preparada de sempre para dar aulas.
Comecei o meu percurso em 1989 (tinha o segundo ano completo do curso de Línguas e Literaturas Modernas - variante de Estudos Portugueses, da Universidade de Lisboa). Completei a licenciatura de 4 anos e corria o ano de 1990 quando surgiu a possibilidade de fazer mais 2 anos daquele que seria o final do curso do ramo Educacional, mas que para mim seria um acréscimo à vertente científica (vertente essa que, completa, me viria a permitir anos mais tarde regressar à Faculdade de Letras e fazer um mestrado - pré-Bolonha - em Literatura Moderna e Contemporânea. Foram 9 anos de estudo na Universidade, fora as formações na minha área e nas vertentes didático-pedagógicas que fui fazendo ao longo de toda a minha vida, quer obrigada pelo Estatuto da Carreira Docente – que me impunha horas de formação por escalão - , quer pela sede de conhecimento e atualização que qualquer professor encerra em si, como componente funcional e estrutural).
Sou Professora por opção. Não vim parar a esta profissão, como muitos julgam dos professores, por não ter outra saída profissional. Acredito no papel transformador do Professor e vibro a cada conquista dos meus alunos, a cada centelha que acendo nas vidas em potência que por mim têm passado ao longo destes anos. São poucos os profissionais que se cruzaram comigo ao longo desta vida que são de outro modo. Também os houve, claro, mas cedo abandonaram o terreno, porque só a paixão por ensinar consegue suportar todos os desmerecimentos, todo o desrespeito de que temos sido alvo, ao longo destes últimos anos. Que ninguém se confunda com os termos: temos uma missão, mas não somos missionários.
Passei por muitas Escolas ao longo desta minha carreira (e não falo apenas no sentido físico, porque essas – sorte a minha – cabem nos dedos de duas mãos, falo sobretudo de filosofias e de formas de viver a Educação), que só terminará daqui a 10 anos, se a saúde e a resiliência continuarem a acompanhar-me como até aqui. Quando entrei na profissão, disseram-me que aos 59 me poderia reformar, porque, como profissão de desgaste, tinha a possibilidade de reforma ao fim dos 36 anos de serviço. Mas as regras alteraram-se a meio do jogo e, sem mais, acrescentaram à minha vida mais 8 anos de trabalho efetivo.
Vivi anos de ouro na Escola Pública, aqueles em que o encanto de
ser portador de algo para os meus alunos, de ser motor e rastilho, nos movia a
todos em prol do mesmo objetivo. Dinamizei jornais escolares, Clubes de Teatro
e de Leitura, numa altura em que o fantasma da Avaliação de Desempenho não
pesava ainda sobre as nossas cabeças como uma necessidade para a mostra de
evidências e todos trabalhávamos - tantas vezes para além das horas estipuladas
no horário – em prol de projetos nascidos a partir dos nossos alunos, com eles
e para eles. Foi com a célebre ministra, de quem nem ouso dizer o nome, que não
se importou de “perder os professores, porque ganhava a opinião pública”, que
se cimentou esta ideia de que pais e professores não poderiam nunca estar do
mesmo lado da barricada (como se a Educação tivesse lados e fosse uma luta que
não visasse apenas um vencedor: o aluno e, por inerência, o país que fica mais
rico quando um aluno progride).
Foi de modo gradual que a legislação foi
minando aquele que era terreno fértil e passou a ser campo de batalha: veio o
novo Estatuto de Autonomia das Escolas, que nos impôs Conselhos Gerais, com
membros externos às Escolas, para eleger Diretores que nunca deveriam ter
deixado de ser Presidentes dos Conselhos Diretivos eleitos pelos seus
pares. A pouco e pouco, os professores passaram a ser fiscalizados,
como se não fossem pessoas de bem e passaram a ser continuamente monitorizados
através de relatórios que não servem ninguém a não ser alimentar a máquina
brutal da burocracia, com o fim de embrutecer e cansar, para que não restem
forças para o questionamento. As designadas “reduções pela idade” da componente
letiva foram sendo substituídas por atividades de presença obrigatória nas
escolas, com alunos, impedindo os professores do usufruto de um direito ganho
pela idade e consequência de um cansaço próprio de quem já muito viveu.
Em simultâneo, veio a imposição de a retenção de alunos dever
ser excecional e, um pouco mais tarde, a diminuição da exigência, através do
estabelecimento das Aprendizagens Essenciais para cada disciplina. E,
lentamente, sem que ninguém percebesse (a não ser os próprios alunos e alguns
dos seus Encarregados de Educação que aprenderam cedo a jogar com esse facto)
passou a valer tudo para acabar com os elevados níveis de iliteracia e de
abandono escolares. Muitos dos alunos adotaram comportamentos displicentes e
parcos de esforço ou trabalho, porque no final acabariam por “passar”; muitos
pais aprenderam a fazer recursos às avaliações finais com base nas falhas da
Legislação e, sendo a retenção de caráter excecional, como justificar que
aquele aluno, não possuindo as competências, deveria ficar retido no ano
anterior até as desenvolver? De repente, o ónus da retenção estava colocado no
bode expiatório de sempre: o professor. E aliada a esta desautorização e
descredibilização da imagem deste, cresceu a indisciplina (e, nalguns casos, a
violência) em sala de aula, porque não é difícil colocar em causa a autoridade
de alguém em quem a própria hierarquia (através das Leis que promulga e faz
cumprir) coloca a sombra da desconfiança e a ausência de braço protetor e tutelar.
E depois há outras feridas abertas, que eu já nem sei precisar o
ano em que aconteceram. Gostava que aqueles que me leem percebessem que é tudo
mais vasto do que este grito de “Não paramos!” que já não cabe em nós. Qualquer
Professor e Educador entenderá quando digo que mataram um pouco de si no dia em
que, por este país fora, agruparam escolas e escolinhas, em nome da Economia,
poupando recursos físicos e humanos, e retirando a cada corpo docente o direito
à sua identidade e história. E entenderá também a raiva e o desalento que se
foram instalando, de fininho, por cada ano que nos roubaram (sim, essa é a
palavra), durante dois períodos de congelamento de tempo de serviço, acrescidos
de uma alteração dos escalões da carreira docente que nos fizeram recuar mais
uns anos na estrutura da carreira. E também reconhecerá o asco (creio que é
essa mesmo a palavra) que nos invade quando vemos milhões gastos em derrapagens
orçamentais de obras que o nosso país não necessita mas que sentimentos
megalómanos colocam como prioridades; um país em que os alunos muitas das vezes
nem têm casas-de-banho com uma porta, uma janela numa sala de aula que feche ou
um estore que funcione. Mas o que eu gostava era que os Encarregados de
Educação também o entendessem. E que percebessem a perigosidade das “soluções”
que este Governo nos apresenta para os problemas existentes.
Numa altura em que tudo falhou em Educação (menos os seus
profissionais no terreno que, apesar de tudo, escolheram não desistir perante
este estado de coisas; que andam há anos a remar contra a maré e a alertar para
a falta de rejuvenescimento da classe), é-nos impossível compreender que a
solução para a falta de profissionais passe pela diminuição dos requisitos de
formação; sendo isto apenas entendível como uma medida que segue a linha da
morte gradual da Escola pública, cujo assassinato vem sendo perpetrado há anos.
Nós também queremos gente nova nas escolas, estamos envelhecidos
e desgastados com a continuada falta de respeito para com aqueles que toda a
vida lutaram por elevados níveis de conhecimento e foram continuamente
arrastados para a lama. Mas não podemos aceitar, mais uma vez, o facilitismo e
as soluções de pacotilha com efeitos devastadores na Educação, num futuro não
muito longínquo.
Sim, fiz greve. Por mim, pelos meus alunos, pela Escola Pública.
E, de todas as vezes que um sindicato da Educação (seja ele qual for) defender
a Escola pública e os seus profissionais, de forma limpa e justa, farei greve.
E continuarei nas ruas, nos jornais, nas internets desta vida, a minha luta, no
movimento que escolhi integrar ao lado dos meus pares, a lutar de todas as
formas possíveis por uma Educação para todos, que a todos sirva e de todos seja
motor de crescimento e felicidade.
Na nossa Luta talvez falte explicar aos pais quem são estes professores que andam nas ruas desde dezembro passado. Ou talvez falte apenas eles entenderem o que andamos a dizer há meses a um Governo que se finge surdo, como se não ouvindo, apagasse os factos. No dia em que todos eles conseguirem romper a imagem incutida por anos sucessivos de tentativa de enfraquecimento da nossa classe, em que perceberem que nós não somos os "chulos! Vão mas é trabalhar!", gritados cobardemente por alguns deles das janelas dos carros que passam pelas nossas concentrações (muitas delas ao fim do dia e, mesmo assim, mandando-nos trabalhar…), talvez a Educação possa ainda ter futuro, porque eles pararão os carros e marcharão ao nosso lado. Nesse dia, os seus filhos (e os nossos! Porque também somos pais, alguns mesmo avós) voltarão a ter direito à Educação de qualidade que os seus professores tiveram um dia. E talvez, nesse dia, nem seja preciso vir agradecer no Facebook aos professores o caminho que estes fazem todos os dias, porque o teremos feito lado a lado, pela Educação dos filhos de toda esta nação portuguesa". Fonte: CNN
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