Eduardo Sá, psicólogo foto da Wook |
O que é que este regresso às aulas tem de diferente de todos os outros? Tudo!
Porque nunca, como agora, os nossos filhos terão feito tantas juras de amor à escola como, entretanto, parecem fazer todos os dias. Nem nós — os pais — tivemos uma noção tão nítida das dificuldades da missão de um professor e uma gratidão tão inequívoca em relação a tudo aquilo que a escola traz aos nossos filhos. Nem nunca tivemos uma ideia tão precisa e tão esclarecida da sua função, do recreio até às aulas, no crescimento de uma criança.
O que é que este regresso às aulas tem de diferente de todos os outros? Tudo!
Porque nunca, como agora, os nossos filhos entraram num ano letivo com tão grandes e assimétricas desigualdades a separá-los entre si. Desde os conhecimentos com que regressam até aos meios que lhes oferecemos para que aprendam. Nem nunca tivemos, como agora, um ano letivo a “terminar” em março e a “começar” em janeiro. Porque — independentemente da generosidade das escolas, da capacidade de reinvenção dos professores, do esforço inacreditável dos pais e do compromisso (espantoso!) das crianças durante a quarentena — a escola vai precisar de muito tempo para “reeducar” os nossos filhos para as aulas “tradicionais”, para os “sintonizar” e para esbater todas as desigualdades com que eles irão regressar, a ponto de os conseguir ter mais perto uns dos outros. Para que, finalmente, voltem a aprender, em conjunto. De forma diferente. E ao mesmo tempo.
E nunca, como agora, tivemos os nossos filhos a regressar à escola tão “embrulhados” em medos, em normas e em protocolos de segurança. E em regras que se sucedem umas às outras. O que faz com que a escola se torne hoje um lugar onde o desafio de aprender se faz, como nunca, numa atmosfera de alerta permanente. E em “liberdade condicional”.
E nunca, como agora, passou a haver tantas desculpas para que as aulas pudessem crescer mais em tamanho e os recreios encolhessem de forma quase absurda. Com a justificação de que isso só se faz para sua própria proteção e segurança. Isto é, nunca, como agora, a escola representou, para todos nós, o exemplo mais inequívoco do quanto ela, como mais nada, desconfina o mundo. E nunca, como agora, a escola, tentando ser amiga das crianças, foi tão longe ao pedir-lhes para que se soltem para a paixão de aprender tão presas e no meio de tantos “confinamentos”.
E nunca, como agora, a escola se tornou tão assética. Tão alarmada diante o toque. Tão militante pelo distanciamento. E tão reservada para com o sorriso. E nunca (tudo por causa das máscaras) ela esperou tanto que os nossos filhos tenham voz enquanto falam baixinho. E nunca a escola parece ter-lhes pedido tanto que aprendam a ser mais pessoas enquanto se encolhem diante de tudo o que são as suas mais fulgurantes manifestações de humanidade.
O que é que este regresso às aulas tem de diferente de todos os outros? Tudo!
Porque nunca, como agora, se cultivou tanto a ideia da segurança e da saúde e parece esquecer-se (tão escandalosamente!) a saúde mental das crianças e dos adolescentes. Ou o modo como estamos agora a desconfinar os nossos filhos, recomendando-lhes que aprendam no meio de vários outros confinamentos, que lhes vão fazer mal. Será que temos falado, tanto como devíamos, das consequências desta contenção toda que lhes vamos pedir para a forma como vão estar atentos e aprender? Será que estamos a ponderar, com o rigor que seria de esperar, os custos (trágicos) de lhes tirarmos recreio e mais recreio, como se a escola fosse a mesma sem esse “pulmão” que faz com que eles respirem de outra forma? Será (mesmo) possível que estaremos à espera que tenham o mesmo rendimento escolar, da mesma forma, como se nada disto os perturbasse na sua relação com tudo aquilo que eles precisam de aprender e de viver? E não será que tantas e tantas normas de saúde não irão tornar as turmas mais tensas e fervilhantes, e mais “indisciplinadas”, como se tudo isso não fizesse com que a missão de ensinar se torne ainda muito mais exigente e muito mais difícil? E será que, no meio de todos estes confinamentos, temos trazido para a conversa aquilo que estamos a pedir a todos os professores, todos os dias, como se nada disto “atropelasse” uma ideia de escola, que todos fomos tendo, e ela não precisasse de ser reinventada? E não fosse preciso muito tempo para que a escola deixe a hiperatividade sossegadinha que representa esta atmosfera de alarme em que os nossos filhos a vão viver para que volte a ser, simplesmente, uma força tranquila? E não estaremos todos a pôr uma naturalidade falsa e um ar desempoeirado e muito “técnico” nisto tudo, como se tivéssemos tudo controlado, esquecendo-nos que nos falta informação clara e transversal, como se, para efeitos de pandemia, a escola fosse competente para ter autonomia, mas para efeitos de planeamento do ensino ela não pudesse viver senão sob tutela? Não haverá uma ideia no ar que faz com que a escola espere que tudo corra bem e com boas “notas”, como se o nosso rendimento não dependesse também da claridade com que nos falam e dos exemplos daqueles que nos “ensinam”?
O que é
que este regresso às aulas tem de diferente de todos os outros? Tudo!
Porque nunca, como agora, vamos precisar tanto de sair das pequenas coisas que se mudam para que tudo fique quase igual para se refundar a escola. E vamos precisar tanto de sair de tantos vícios de forma do século XIX que a escola ainda tem e de trazê-la para o século XXI. Perscrutando o que precisamos que ela seja para que os nossos filhos queiram, como estão a querer agora, fugir para ela. E vamos precisar de trazer as novas tecnologias para a escola, claro, sem esquecer que os nossos filhos precisam de escrever com o corpo e não só com a ponta dos dedos. E precisam do movimento. E dos grupos. E de imaginar. E precisam da palavra. Mais do que do número. E vamos precisar que ela deixe de ser esta deriva, tantas vezes batoteira, de metas e de rankings e se deixe desta aragem industrial com que o “sistema” (cheio de necessidades educativas especiais que parece que nunca se resolvem) insiste em ter os miúdos a aprender do zero, da mesma forma e à mesma velocidade. Como se os nossos filhos fossem singulares até entrarem “nesta” escola e saíssem dela como “produtos normalizados”. E vamos precisar de lhes dizer, ao contrário do que lhes estamos a pedir, que, para sua segurança, as crianças ganham se forem crianças!
O que é que este regresso às aulas tem de diferente de todos os outros? Tudo! @ Expresso
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