Num tempo em que por cada 1.000 recém-nascidos morriam 45 bebés em Portugal e em que por cada 100 mil partos havia 59 mães que perdiam a vida, num tempo em que os maridos temiam que as suas mulheres se tornassem “desobedientes” por se relacionarem com médicas, num tempo em que a contraceção era discutida na clandestinidade ou com recurso a dois bonecos e uma melancia, num tempo em que os médicos faziam desenhos porque os doentes não sabiam ler os guias de tratamento, num tempo em que o analfabetismo nem sequer permitia a devida utilização de um mero supositório, num tempo desses, que era o nosso tempo há 50 anos, grupos de jovens médicos de Lisboa, Porto e Coimbra lançaram a "semente" que faria brotar a raiz do Serviço Nacional de Saúde. "Fomos funcionários do SNS antes do tempo"
Na manhã de 25 de abril, vários jovens médicos viram-se envolvidos numa outra revolução, a da saúde. Vasco Trancoso, escalado para trabalhar nas urgências do Hospital de São José, em Lisboa, afirma "Nesse ano, os médicos do meu curso tiveram de fazer o serviço militar obrigatório. Eu calhei ir para Mafra, éramos 400 cadetes, e isto coincidiu com o início das campanhas de dinamização cultural do MFA em outubro. Íamos em camionetes e outros veículos militares por aldeias e, no caso dos médicos, focámo-nos em inspeções sanitárias em fábricas e em educação sanitária à população – explicar um simples lavar de mãos, que uma simples gripe não deveria ir procurar logo uma urgência..."
Foi durante essas campanhas que médicos como Trancoso, José Gameiro, Eduardo Barroso e outros, ficaram cientes da "injustiça" que grassava em Portugal em termos de cuidados de saúde. "Apercebemo-nos de que as populações das aldeias e da periferia tinham todas muito menos condições", conta à distância de cinco décadas. "Tínhamos 75% da população que pertencia aos hospitais ditos distritais com apenas um quarto dos recursos de saúde. E depois Lisboa, Porto e Coimbra tinham 75% dos recursos humanos e materiais – médicos, enfermeiros, camas – para apenas um quarto da população."
Foi a "semente que faria surgir a raiz" do Serviço Médico à Periferia (SMP), conta o gastroenterologista, referindo "uma das coisas mais fantásticas e mais belas que aconteceram" na sua vida de médico. "Tem havido uma narrativa de que o Ministério da Saúde entendeu que havia necessidades de saúde a nível periférico e insistiu para que houvesse o SMP, mas não é verdade", assegura. "Foram os próprios médicos, já com esta semente, já com aquele espírito de generosidade que Abril fez nascer, que acharam que havia necessidade disso e que tiveram de negociar com o Ministério."
Ana Jorge, atual provedora da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, passou algum tempo em Mértola com o então marido, Álvaro Carvalho, durante os primeiros meses de uma experiência que se provaria o embrião do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Uma das experiências que Ana Jorge recorda até hoje foi a de um parto que até nem foi difícil, mas em que a criança nasceu sem respirar. “A criança nasceu mal. Eu reanimei-a, dentro daquilo que era possível fazer na altura, quer dizer, aos dias de hoje eram quase barbaridades, não se faz... Mas na altura não havia mais nada. Havia mãos e pouco mais. Consegui pôr a criança a respirar e no dia seguinte estava viva. De vez em quando lembro-me desse bebé porque ainda por cima fui para Pediatria. Aquilo marcou-me.” “Os partos eram o nosso grande quebra-cabeças”, recorda Ana Jorge.
Três anos antes, em 1973, as elevadas taxas de mortalidade infantil e materna em Portugal chocavam com os números no resto da Europa – por cada 1.000 recém-nascidos morriam em média 44,8 bebés em Portugal, por cada 100 mil partos 59 mães perdiam a vida. Fonte: CNN
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