"onde estava no 25 de abril (de 1974)?"
Era uma quinta-feira. Tinha aulas à tarde. Contra o que era habitual, nessa manhã, minha mãe ouvia a rádio com muita atenção. As notícias sucediam-se. Disse-me: "O pai ligou e disse para não ires para a escola."
"Ui, vou folgar!", lembro-me de pensar. Mas, logo de seguida, questionei-me: "Como assim? Nunca tinha tido autorização para não ir à escola?!"
"Mas porquê, mãe?", perguntei, curiosa. Minha mãe balbuciou qualquer coisa como: "Aconteceu algo e há muita agitação nas ruas. Vamos ver no que dá!"
Tinha 14 anos e muito pouca consciência política. À época, não se falava de política em casa, por isso, não percebi bem o que poderia ser aquela "agitação" e confortei-me com a ideia de ficar em casa, escutando também eu a rádio como minha mãe, aguardando mais pormenores.
Porém, um primo mais velho contara-me que era proibido falar e cantar à vontade. Também sabia que os rapazes, se não prosseguissem estudos superiores ou se estudassem e não tivessem sucesso académico, eram chamados para cumprir serviço militar e teriam de "ir para a guerra” (colonial). Essa era uma preocupação da família.
Com esse primo de 19 anos, já a estudar no ensino superior, tinha assistido a sessões à porta fechada onde se ouviam discos vinis proibidos em Portugal, de cantores como José Mário Branco e Sérgio Godinho, que interpretávamos e analisávamos em segredo, sempre com um dos elementos atento à porta. No fim dessas sessões o meu primo dizia-me: “Não podemos contar em casa o que estivemos a ouvir”. E eu obedecia. A adrenalina desse secretismo fazia-me querer ir outra vez.
Pensei, então, nesse dia 25 de abril de 1974 que o que se passava devia estar associado à falta de liberdade que o meu primo tantas vezes referia.
Não havia formas de comunicar facilmente. A televisão tinha apenas dois canais e não funcionavam todo o dia. Telefonar, enviar uma SMS, ir ver à Net – privilégios dos dias de hoje -, eram possibilidades inexistentes.
Entretanto, o meu pai chegou para almoçar e disse-me, apreensivo: "Há muita confusão nas ruas e lá para as bandas do teu liceu, ainda mais. Por isso, hoje ficas em casa e amanhã logo se verá."
Eu estudava no Liceu Rainha Santa Isabel, no Porto, só para meninas. Percebi mais tarde que a agitação a que meu pai se referia pelas "bandas do liceu" se relacionava com o facto de ali perto existir a sede da PIDE/DGS (paredes meias com o cemitério do Prado do Repouso) e, segundo soube depois, já muita gente se manifestava às portas desse local, exigindo a extinção dessa organização e a libertação dos presos políticos.
Também me recordo de outras palavras de meu pai, ditas no final desse dia 25 de abril - já depois de vermos as notícias na RTP, tomada pelo Movimento das Forças Armadas (MFA) - desta feita já mais descontraído e sorridente: "Houve uma revolução e, creio, que a partir de hoje vamos viver melhor". Minha mãe sorriu também, de forma cúmplice.
Nunca mais esqueci essas palavras. Pareceram-me serenas e, sobretudo, esperançosas.
"Pai, apesar de tudo, ainda me move hoje, 50 anos depois, a tua esperança e acredito que, apesar de todas as pedras do caminho, começámos, a partir desse dia, a viver melhor. Pelo menos, em liberdade.
Depois de abril de 1974
Graças ao 25 de abril de 1974, pude ter um curso superior - na época tão restrito a tantos e às raparigas em particular. Pude provar que não era necessário nascer em berço de oiro para poder singrar. Pude escolher ser o que queria. Pude exercer a minha profissão como a idealizara. Pude fazê-lo em liberdade.
E idealizara ser professora. Porquê? Porque tive professores que me marcaram e, quando os ouvia, sonhava ser como eles: ser capaz de ensinar, aprendendo; ser capaz de aprender, ensinando, cativando para o saber. E fazer coisas diferentes: envolver os alunos em projetos que os fariam ser mais empenhados socialmente, que os obrigasse a criar, a sonhar ser diferente, a potenciar as suas capacidades. Sonhei criar com eles uma rádio escola; sonhei lutar com eles contra as adições; sonhei fazê-los participar a fazer um jornal; sonhei envolver os EE nas atividades dos seus educandos; sonhei levá-los ao teatro; sonhei viajar com eles para que conhecessem o que não poderiam conhecer de outro modo; sonhei... E iniciei a minha profissão aos 21 anos, já com o curso concluído.
Tanto orgulho sentiram os meus pais! Diziam: "A nossa filha é professora. Tem 21 anos e alunos com 18". Era verdade! No meu primeiro dia de aulas, quando cheguei à turma de um 11.º ano, um aluno mais espigadote disse-me: "Tu não és desta turma." E eu respondi, tremendo por dentro: "Pois não, sou a vossa professora de Português." E assim comecei.
Noutras escolas, cheguei a ter alunos com 50 anos e mais, que estudavam à noite, em regime pós-laboral. Não vacilei. Lembro-me bem da D. Amélia e do Sr. Almeida, que estudavam para poderem ascender nas suas carreiras: ela como auxiliar de Saúde e ele como jornalista. Podiam ser meus pais! E como cresci, eu, jovem, tão dedicada, respeitada e reconhecida.
E por aí andei... até chegar à ESÁS.
ESÁS: "O que eu andei pr'aqui chegar!!!"
Não, não tenho 50 anos de ESÁS, mas estou nela há 36 anos, dos 43 que levo de profissão.
Antes de aqui chegar percorri outros destinos, uns mais agradáveis que outros, mas sempre lugares de passagem, efémeros no tempo, porém marcantes por um qualquer motivo.
Quando aqui cheguei, senti que chegara a casa. Fui muito bem recebida pelos membros da Direção, que tinham - e sempre tiveram - o seu gabinete aberto e assisti pela primeira vez, nos meus sete anos de atividade profissional, a uma receção aos novos elementos como nunca tinha visto. Nada pomposa, nem sumptuosa, mas divertida e autêntica, com muita música, dança, teatro e côr. Soube, tempos depois, que esta era conhecida como "a escola das festas".
Lembro-me do meu deslumbramento e de pensar: "O que é isto?".
Foi em 1988. Nunca mais daqui saí. Esta não é a escola mais perto de minha casa (resido no Porto), mas é a escola que me escolheu e acolheu: a minha ESÁS.
Aqui consegui cumprir muitos dos meus sonhos. Aqui cresço todos os dias. Estou quase no fim da carreira e continuo a considerar que esta é uma escola de festas. De muitas festas e de sonhos. A escola deve ser sinónimo de festa, de alegria, de saber, de aprendizagem, de inclusão, de projetos e de afetos. E a ESÁS é uma escola de liberdade.
Manuela Couto (professora de Português)
4 comentários:
Ensinar aprendendo e aprender ensinado, que mais se pode almejar... Parabéns professora Manuela, 25 de Abril de 74 sempre...
É um orgulho e uma enorme satisfação ter te como colega e amiga aqui na ESAS. É 'muito mais o que nos une do que aquilo que nos separa'. Agora e sempre.
É uma honra poder partilhar dias contigo. Sempre admirei a tua integridade, a tua sabedoria, a tua sereniidade. Cheguei à ESAS há 25 anos e logo me serviste de modelo. Vale a pena ficar numa escola quando se trabalha com colegas empáticos, inteligentes, com valores e espírito crítico , que sabem calar quando o devem fazer, mas que também ousam falar quando é preciso que alguém o faça. Disso tudo, és o melhor exemplo e, por isso mesmo, todos te ouvem e admiram, colegas, alunos, e pessoal não docente. E não posso deixar de fora o mais importante que partilho contigo - a paixão de ensinar, de ajudar a construir futuro, de formar mentes abertas, críticas e livres, cultas, humanas e solitárias, não resignadas, mas resilientes que saibam deixar a sua marca na construçao de um mundo melhor e mais feliz. Bem hajas!
Quanta generosidade! Obrigada, muito obrigada.
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