O CRESCER dá hoje continuidade ao texto publicado na semana passada, da autoria da professora Ana Granja.
Educar para a cidadania ou educar na cidadania? (II)
A
perspetiva holística da ação educativa, que assume como grande finalidade a
educação de cada uma e de todas as potencialidades humanas, surge nas
sociedades atuais como um novo paradigma educativo, sistémico e integrador,
capaz de colmatar as múltiplas fraturas que o paradigma mecanicista da
modernidade incutiu na nossa visão do mundo. Pretende-se assim romper com uma
tradição positivista ainda muito arreigada nas nossas escolas e responsável
pelo sistemático desprezo por dimensões fundamentais do desenvolvimento
integral e harmonioso do ser humano: os sentimentos, a intuição, a fantasia, a
espiritualidade, a criatividade, a arte, a expressão corporal e o
desenvolvimento moral.
Uma escola que não entende ensino e aprendizagem
como pólos recursivos de uma relação dialógica, uma escola que separa alunos e
professores das pessoas que são (e já eram), uma escola que reduz o saber a
disciplinas fragmentadas, e sem pontes entre si, uma escola que se isola do
contexto de que faz parte e que não se assume como espaço de cidadania,
configura uma escola incapaz de enfrentar o desafio da globalidade, inapta para
tratar “realidades multidimensionais, globais, transnacionais, planetárias,
problemas cada vez mais transversais, pluridisciplinares, até mesmo
transdisciplinares.”
Por tudo isto, o grande desafio da nossa época é
precisamente adaptar todo o sistema educativo a um novo paradigma que educa
para a totalidade, partindo da totalidade. O direito de cada aluno ao
desenvolvimento da sua personalidade e à plenitude da sua cidadania deve ser
finalidade e fonte de legitimidade de tudo o que se faça a título de educação.
Este novo paradigma do direito à educação deve centrar-se no interesse superior
do educando e libertar-se da tendência tradicional de reproduzir as crianças e
jovens à semelhança dos adultos.
Educar para a cidadania significa desenvolver nos
nossos alunos e alunas a capacidade para pensar de forma crítica e
independente, de modo a estarem aptos a participar ativamente nos assuntos da
comunidade e do planeta. Se confinarmos a disciplina de Cidadania e
Desenvolvimento à sala de aula e a tornarmos refém de pedagogias transmissivas e
expositivas estaremos a matar à nascença o contributo inestimável que esta
componente curricular pode ter no desenvolvimento pessoal e social dos nossos
alunos, ao mesmo tempo que lhes estamos perversamente a passar a mensagem de
que Cidadania é qualquer coisa que só acontece na escola às quartas-feiras, das
10h30 às 11h20.
Esta perspetiva monolítica e insular da disciplina
de Cidadania e Desenvolvimento acarreta o risco, real e perverso, de a vermos
reduzida a iniciativas individuais de mera forma(ta)ção cívica (quase na forma
de curso de boas maneiras), através da qual os alunos se tornem seres submissos
e passivos perante as receitas prescritivas que nós, professores, lhes impomos.
Educar para a cidadania implica proporcionar aos alunos experiências reais e
contextualizadas que lhes permitam ter voz ativa, propor e organizar iniciativas,
fazer escolhas conscientes e tomar decisões responsáveis e sustentadas. Educar
para a cidadania implica uma dimensão vivencial e experiencial que não se
compadece com teorias ocas e abstratas, que dificilmente se traduzem em
aprendizagens significativas.
Somente uma
educação não fragmentada, isto é, uma educação na totalidade e para a
totalidade pode permitir ao ser humano cumprir-se como tal, ser plenamente. Ensinar
a condição humana, aprender a viver e refazer a ideia de escola na e para
a cidadania não é possível só com ciência e técnica. A escola deve
assumir-se como espaço de afetos. Tal como a vida.
Ana Granja