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terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

um cê a mais

A propósito do novo acordo ortográfico, Manuel Halpern, jornalista e crítico do Jornal de Letras, Artes e Ideias, escreveu este curioso texto, "Um cê a mais", que aqui transcrevemos:

Quando eu escrevo a palavra ação, por magia ou pirraça, o computador retira automaticamente o c na pretensão de me ensinar a nova grafia.

De forma que, aos poucos, sem precisar de ajuda, eu próprio vou tirando as consoantes que, ao que parece, estavam a mais na língua portuguesa.

Custa-me despedir-me daquelas letras que tanto fizeram por mim.

São muitos anos de convívio. Lembro-me da forma discreta e silenciosa como todos estes cês e pês me acompanharam em tantos textos e livros desde a infância. Na primária, por vezes gritavam ofendidos na caneta vermelha da professora: não te esqueças de mim!

Com o tempo, fui-me habituando à sua existência muda, como quem diz, sei que não falas, mas ainda bem que estás aí. E agora as palavras já nem parecem as mesmas. O que é ser proativo? Custa-me admitir que, de um dia para o outro, passei a trabalhar numa redação, que há espetadores nos espetáculos e alguns também nos frangos, que os atores atuam e que, ao segundo ato, eu ato os meus sapatos.

Depois há os intrusos, sobretudo o erre, que tornou algumas palavras arrevesadas e arranhadas, como neorrealismo ou autorretrato.

Caíram hifenes e entraram erres que andavam errantes. É uma união de facto, para não errar tenho a obrigação de os acolher como se fossem família. Em 'há de' há um divórcio, não vale a pena criar uma linha entre eles, porque já não se entendem.

Em veem e leem, por uma questão de fraternidade, os és passaram a ser gémeos, nenhum usa chapéu. E os meses perderam importância e dignidade, não havia motivo para terem privilégios, janeiro, fevereiro, março são tão importantes como peixe, flor, avião.

Não sei se estou a ser suscetível, mas sem p algumas palavras são uma autêntica deceção, mas por outro lado é ótimo que já não tenham.

As palavras transformam-nos. Como um menino que muda de escola, sei que vou ter saudades, mas é tempo de crescer e encontrar novos amigos.

Sei que tudo vai correr bem, espero que a ausência do cê não me faça perder a direção, nem me fracione, nem quero tropeçar em algum objeto abjeto. Porque, verdade seja dita, hoje em dia, não se pode ser atual nem atuante com um cê a atrapalhar.

2 comentários:

marcelo disse...

Confesso que para mim vai ser uma grande violência. Sobretudo porque sei que as consoantes mudas estão/estavam lá a fazer alguma coisa, concretamente para nos ajudar na acentuação. Agora, vou passar a ler "dirêto", "corrêto" "bâtismo" e "redâção".
Não, não faz sentido. E a mim não me preocupam os mais novos, os meus alunos há anos que escrevem com o acordo ortográfico e, pior, sem acentos, e lêem/leem como se eles lá estivessem. Preeocupam-me aqueles que aprenderam a escrever e a ler com as consoantes mudas.
Já agora, se a regra é "o que não se lê, sai", então acabam com os H's.

Luísa Cabral disse...

A língua é viva e, como tal, evolui em função do uso que lhe dão os seus utentes.
Não é de admirar que os milhões de brasileiros que a usam tenham determinado algumas das evoluções que nos assustam.
Terá sido a vontade de realizar uma boa AÇÃO que moveu os portugueses a terem concordado com este acordo? :)