Este foi um dos anos mais felizes da
minha vida.
De manhã, a camioneta saía às sete e
dez da Trindade e desaguava em Paredes às oito e vinte, mais coisa menos coisa;
à tarde, as aulas na faculdade, ao fim do dia, os ensaios do orfeão. Dias mais
que perfeitos.
À noite havia, com alguma
regularidade, uns colóquios quase clandestinos, organizados por professores da
faculdade na Cooperativa Árvore, um espaço de debate e exposições, liderado por
José Rodrigues. Os temas eram muito diversos e estimulantes: pintura, poesia, arquitetura,
música, literatura, política. Os oradores, da nata dos oradores; oradores
ostracizados pelo regime vigente. Eu não sabia nada disto.
Ficava, isso sim, maravilhada com
aqueles diálogos inteligentes, com aquela cultura que desconhecia, com aquela
gente toda tão diferente de mim. Fascinada com a qualidade das ideias e dos
discursos que ali se produziam. Consciente da minha ignorância, mas
deslumbrada. Só queria que aquelas horas
não acabassem nunca.
Até que um dia, sensivelmente um mês
antes do 25 de Abril, José Augusto França, historiador e crítico de arte, foi o
convidado da palestra. Quando chegámos à Árvore, as portas estavam encerradas e
as pessoas permaneciam do lado de fora. Os organizadores movimentavam-se de um
lado para o outro com algum nervosismo e iam pedindo que esperássemos um pouco.
Ao fim de uns largos minutos, o professor Arnaldo Saraiva disse abertamente que
a Pide tinha proibido o colóquio e encerrado as portas com cadeados. Os
polícias insistiam “circular, circular” (frase que ouvira muitas vezes, quando
frequentava o liceu e à saída das aulas ficávamos a conversar em pequenos
grupos).
Ficámos por ali à espera. O ambiente
cada vez mais tenso. Até que um dos
organizadores se juntou ao grupo para dizer que a palestra se ia realizar numa
galeria de arte, disponibilizada por um elemento do público presente. E lá
fomos todos a pé, das Virtudes até José Falcão, cantando em surdina.
Depois de acomodados, sentados pelo
chão e nas poucas cadeiras disponíveis, estávamos finalmente prontos para a
sedução das palavras. A conferência mal tinha começado quando entraram
impetuosamente, naquele espaço exíguo, uma série de homens soturnos com cães
enormes pelas trelas. Gritavam palavras desordenadas e diziam-nos que nos mantivéssemos
nos lugares e nos identificássemos. Medo. Muito medo. A Pide existia e estava ali. Foram
momentos de pânico. Empurrões, gritos, violência. Algumas pessoas foram conduzidas
para as carrinhas. As outras foram identificadas com perguntas perversas e
humilhantes. Uma senhora desmaiou. Foi arrastada para o exterior sem que o
marido a pudesse acompanhar. Outros choravam em silêncio. Dizia-se que “já
tinham ficha na pide”. Um dos nossos
amigos foi levado para interrogatório. Ele e outros mais. Passou a madrugada e
a manhã a ser interrogado com alguma brutalidade. Regressou triste e não saiu
de casa durante dias. A nossa vida não foi mais a mesma. Também não houve mais
colóquios na Árvore.
Felizmente o 25 de abril aconteceu
pouco tempo depois.
Quando chegámos à escola, só o
deslumbramento e a vertigem. No cimo daquela escadaria de pedra, na aridez
vetusta daquelas paredes cinzentas, oscilava impaciente uma bandeira vermelha
(improvisada), nas mãos felizes de um colega de Educação Física. “Viva a
Liberdade”, gritava ele, enquanto se lhe juntavam timidamente alguns dos
professores que iam chegando.
Foi um dos momentos mais emocionantes,
intensos e belos da minha vida.
Eu quero ser Abril outra vez.
Filomena Paupério
Que bom rever-te Meninha, nas fotos e nas palavras. O teu semblante atual reflete a liberdade e a alegria ao reviver esses momentos históricos e inesquecíveis. Grande abraço.
ResponderEliminarO teu sorriso é, como sempre te conheci, um sorriso limpo, iluminado, franco e verdadeiro.
ResponderEliminarTenho muitas saudades do nosso Abril em Águas Santas.
Beijinho, Filomena