segunda-feira, 22 de maio de 2023

opinião| "A minha experiência surreal como vigilante da Prova de Aferição do 8º ano"

A prova de aferição de Tecnologias de Informação e Comunicação foi o primeiro teste a esta inovadora avaliação digital em curso e será realizado nos próximos dias por cerca de 90 mil alunos. Eu, professora e cronista, estive lá.
Vigiei hoje de manhã uma das poucas provas de aferição que, em minha opinião, pode e deve ser feita com recurso às novas tecnologias de Informação: a Prova TIC. Constituída por catorze tarefas, desde a alteração da palavra passe, à criação de um sítio na internet, de uma apresentação em formato digital ou de um infográfico, passando pela receção e envio de correio institucional com ficheiros em anexo, guardar ficheiros na nuvem, fazer trabalhos de grupo até à submissão da prova e término da sessão, a prova que abordou temas como a importância da água e a desinformação que cresce pela mundo digital, com especial destaque para as
fake news, começou logo mal.  Quando nos foi entregue a palavra passe que daria acesso à prova, o que vinha impresso era: PrimaVERA. Porém, com esta palavra de acesso, ninguém conseguiu aceder o que, para começar, já era um pequeno problema… Deste modo, munidos de toda a calma e experiência que caracterizam um professor, conseguimos descobrir –  por tentativa e erro – que a verdadeira palavra passe era “primaVERA” e não “PrimaVERA” (atente o leitor no pequeno detalhe).
Ultrapassado o primeiro obstáculo, tivemos um sistema lento, computadores que bloquearam a cada dois minutos, um programa que congelou em determinadas tarefas, alunos que tiveram de entrar e sair mais de dez vezes, outros que saltaram várias tarefas para chegarem ao fim e conseguirem submeter a prova. Entre as 8h e as 9h30, só por uma vez conseguimos ter todos os alunos a realizar a prova em simultâneo, ou seja, sem quaisquer problemas técnicos. A dada altura, olhei para um miúdo que, com ar desolado, me disse: Stora, já entrei e saí tantas vezes que estou quase a desistir de completar a prova. Ou outro que, em tom de desabado, atirou: Que experiência horrível, stora! É claro que há sempre os que não querem desistir: Agora, vou tentar uma última vez….
Quis obviamente saber o que pensaram da prova. Para o Muhammad, esta foi uma experiência perfeitamente desnecessária: as tarefas eram muito básicas e o programa era demasiado lento; o Guilherme considerou a prova fácil mas foi preciso muita paciência, stora. E depende de cada escola e dos computadores que tem. Os nossos, mesmo assim, eram portáteis novos. Em TIC faz sentido fazer assim, nas outras disciplinas, não.
Uma notícia do Expresso online de 15 de maio da autoria de Isabel Leiria, informava que segundo o presidente do Instituto de Avaliação Educativa (vulgo IAVE, para nós professores), organismo responsável pela realização dos testes de avaliação externa, existem todas as condições para o arranque das provas de aferição em formato digital. Relembramos que os testes realizados em formato digital visam simplificar o processo avaliativo e que este ano serão feitas em computador mais de 500 mil provas do 2º, 5º e 8º anos. Prevê-se que este processo de desmaterialização da avaliação se estenda de forma progressiva aos exames nacionais e que esteja concluído em 2025.
As provas de aferição do ensino básico não contam para a nota final dos alunos, servem apenas para perceber qual o seu grau de conhecimentos relativamente aos conteúdos em avaliação. Como forma de tranquilizar o enorme nervosismo de alguns dos alunos a quem o programa encravou mais de dez vezes ao longo da prova (e tínhamos connosco dois técnicos de informática na sala a acudir a todos – e foram muitos – os pedidos de ajuda), tentei explicar-lhes que estávamos a ser – eles e nós – perfeitos ratos de laboratório, numa experiência levada a cabo pela primeira vez e, por isso mesmo, dever-nos-íamos sentir felizes, qual cobaias de um sistema experimental que visa anular o desperdício de papel, poupar árvores, proteger a natureza, preservar o planeta e fui por aí fora, dando largas à minha ainda fértil imaginação.
Porém, a realidade é outra. Não irei aprofundar aqui as razões que terão levado a que a esmagadora maioria dos responsáveis pelos agrupamentos de exames do país tenha posto o lugar à disposição, como não vou gastar carateres sobre o absurdo de provas de aferição em formato digital para alunos do 2º ano, numa altura em que estes alunos ainda estão em fase de desenvolvimento da sua motricidade fina e em processo de aquisição de competências de leitura e de escrita. O absurdo da realização de provas e exames em formato digital, por exemplo na disciplina de Português, é preocupante. Mas não fica por aqui. Chega quase a ser ridículo! Citando Ana Cristina Leonardo, crianças cujo controlo para usar uma caneta ou um pincel ainda estão nos primórdios, cuja caligrafia é ainda hesitante mas que de repente são elevadas à categoria de dactilógafas em busca do acento e da tecla da maiúscula (…). É igualmente despropositado transmitir aos alunos a insignificância da escrita manual quando é uma das grandes lutas travadas pelos professores no seu dia a dia (Público, 12 de maio 2023).    
Enquanto professores, procuramos mudança e queremos inovação. Precisamos de computadores nas salas de aula que funcionem e de acesso à internet que não caia. Porém, antes da nossa capacitação digital e da capacitação digital dos nossos alunos, há outras competências que devem ser adquiridas. Talvez seja pertinente relembrar que o facilitismo generalizado que se vem verificando pode não ser a solução para os nossos problemas… Talvez seja importante recordar aos nossos governantes que, na prova de aferição de hoje, os professores de Portugal só não se sentiram sapos cegos porque, infelizmente, há muito que começaram a ver onde tudo isto nos iria levar. de Carmo Machado @ Visão/Sapo

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